Neste filme temos a interessante mescla de dois estilos de vida extremamente diferentes que se juntam pelo acaso: um religioso fanático e amargurado pelo fim de seu casamento, que encontra uma garota espancada, drogada e seminua na sarjeta, a qual levava um estilo de vida promíscuo e vicioso até então.
A forma como os dois personagens são apresentados é extremamente interessante: dotadas de dinamismo, suas cenas vão sendo intercaladas e se desenvolvendo entre si, que, carregadas com uma bela trilha sonora aos moldes do blues, somadas às ótimas atuações de Samuel L. Jackson (Lazarus) e Christina Ricci (Rae), intrigam e conseguem persuadir o telespectador, fazendo-o acreditar que está prestes a presenciar algo grandioso e atraente.
O ápice de tal dinamismo se dá no momento em que o velho fazendeiro deprimido resolve, inusitadamente, acorrentar a garota, numa tentativa desesparada de fazê-la rever seu conceitos deturpados, e assim mudar seu modo de vida(trazendo até certa comicidade ao filme, algo que foi muito bem encaixado). E a partir desta situação, desenvolve-se uma interessante e inesperada relação de amizade entre os dois.
Porém, o filme perde todo o seu charme, estilo e dinamismo, no momento em que Lazarus resolve libertá-la, pois todo aquele sexualismo, irreverência e vitalicidade são trocados por uma sequência de cenas fatigantes, que se prolongam, muito infelizmente, até o final do filme.
Além disso, o enredo passa então a se perder em clichês hollywoodianos: justificativas irrelevantes (àquela altura do desenrolar da história) sobre a promiscuidade de Rae e de sua relação com a mãe, tentando atribuir à personagem algum tipo de nobreza, que até então não havia sido demonstrado e nem insinuado. E por parte de Lazarus, a sua aproximação amorosa com a farmacêutica local, também na tentativa frustrada de dar uma certa nobreza ao personagem. Estendendo, assim, a trama para outros níveis e personagens irrelevantes em relação ao que era mais interessante e inspirador no filme: a relação entre duas personagens desgraçadas.
Ao frisar este último parágrafo, quero dizer que, para que o filme continuasse coerente e condizente com a sua proposta inicial, as duas personagens deveriam se manter baixas, sujas, viciosas, exageradas e ferradas pela vida, se aproximando um com o outro principalmente por isso (porém sem personagens externas).
Assim, num provável bom andamento de amizade entre os dois, entraríamos então na cena em que o namorado de Rae aparece com uma arma. Pode ser apenas um delírio de minha parte, ou uma visão muito tarantinesca, mas, se ele, ao invés de apenas acertar um golpe em Lazarus, desse-lhe um tiro na cabeça, alcançaríamos aí, em níveis extraordinários, as propostas do início do filme. Tal acontecimento envolveria a trama numa situação ainda mais tensa, dinâmica, irreverente e desesperadora do que a anterior, pois toda aquela imagem conselheira, madura, confortadora e acolhedora que Lazarus fornecia ("a luz no fim do túnel'', vulgarmente dizendo) teria sido totalmente destruída, e assim, teríamos Rae num grande impasse psicológico e atraente, e não um enredo previsível e redundante, como o filme apresentou.
Enfim, não seria válido ficar aqui remontando o que eu julgaria necessário no roteiro do filme, mas, se por algum meio, a irreverência, dinamismo, sujeira, baixeza, sexualidade e extravagância do filme fossem mantidas até o seu final (carregadas de várias e boas doses de Blues), teríamos um belíssimo retrato da podridão humana, e não apenas um filme mediano, como acabou se tornando (vide a própria nota dada pela equipe Cineplayers).
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