Passado os conflitos da primeira grande guerra mundial, a Europa se recuperava das catastróficas consequências do episódio, que formou um gigantesco número de vítimas afetadas durante e depois do conflito. Dentre uma dessas pessoas está Ewa Cybulska (a excepcional Marion Cotillard), que desesperançosa com a situação em seu país natal resolve tentar a vida com a irmã indo para o lugar onde foi depositada a esperança de milhares de imigrantes: O Estados Unidos. País pouco afetado pela guerra, os EUA começam durante esse período sua ascensão como maior potência do mundo, o que atrai inúmeros europeus que sofreram com a violência dos conflitos para tentar um recomeço nessa terra prometida.
Assim, não é a toa que Era Uma Vez em Nova York abre suas cenas com a famosa Estátua da Liberdade, uma materialização das esperanças e anseios daqueles que buscam no lugar um ponto de fuga no qual tudo será realizado, todos serão felizes. Sob esse aspecto, observa-se que há alguma coerência na tradução nacional do título, já que a história realmente tem algum tom fabulesco em seu entorno, mas principalmente no que se refere as expectativas da própria protagonista e na visão histórica pela qual o país (mas principalmente essa cidade) passavam no momento.
Entretanto, é de se desconfiar que título tão genérico seja escolhido apenas pra suprir as necessidades comerciais da distribuição nacional do filme, já que os conhecedores do cinema do diretor James Gray dificilmente se deixarão enganar por ele. A Nova York de Gray é imoral, violenta, corrupta, suja, na qual a protagonista terá que lutar não apenas com seus algozes, mas com a própria cidade para sua sobrevivência. Já no início a cidade se mostra cruel com Ewa, como se tentasse impedir sua entrada. Sua irmã é barrada por causa de uma suposta doença e a própria Ewa é impedida por causa de seu suposto comportamento imoral dentro do navio que a trouxe até o país. Há uma dualidade que permeia toda a história, na qual nada e ninguém é o que parece, toda a ação terá uma consequência oposta ou inesperada, nada é garantido. Então, assim como a cidade incrimina e acusa, ela também oferece um pouco de esperança a Ewa, quando prestes a ser deportada para o seu país natal, encontra Bruno Weiss, um agente teatral familiarizado com as entranhas corruptas da cidade, que consegue ajudá-la a escapar da deportação e oferece ajuda para retirar sua irmã do hospital a que foi levada.
Bruno oferece abrigo e alimentação a Ewa, algo que não a impede de desconfiar da índole do homem. Na cena que introduz o apartamento de Bruno, no qual acontecem inúmeras das cenas do filme, é notável como é instaurada uma aura de desconfiança e mistério, primeiramente pela performance dos atores, notáveis em seus papéis (Joaquin Phoenix, interprete de Bruno, oferece em sua atuação uma ótima dualidade de caráter), mas também pela movimentação de câmera, que perpassa lentamente o cenário como se analisasse receosamente, pelas maneiras gentis e prestativas de Bruno que recebem o olhar de dúvida de Ewa. Entretanto, um elemento chave que personifica toda a ideia desta cena cena está quase que escondido na presença de uma garotinha, que calmamente faz seu dever de casa na mesa da sala do apartamento. As maneiras da criança são simpáticas e ela tem palavras gentis acerca de Bruno, mas seu rosto nunca é totalmente mostrado, como se as ações do homem fossem motivadas por algo obtuso, que não é o que parece. Essa desconfiança instaurada na cena também pode ser comparada com a própria personalidade de Ewa, que longe de ser apenas a mocinha inocente, desconfia dos acontecimentos e pessoas, e é nessa cena que se mostra um pouco da dúvida e desconfiança que será experimentada não apenas por Ewa, mas também pelo espectador durante o resto do filme. Na cena posterior, ainda é perceptível que o caráter de Bruno ainda está em xeque, já que a maior parte do diálogo ele está escondido atrás de uma cortina rendada e de uma janela de vidro que deforma levemente sua face.
Ainda que tudo parece acontecer de forma a dar certo para Ewa, com pouco tempo descobre-se as reais intenções de Bruno e da cidade com a mulher. Produtor de um show num pequeno teatro, Bruno utiliza o espaço como fachada para marcar encontros com prostitutas e ajudar na venda de bebidas do local, ambiente com o qual com pouco tempo Ewa se vê envolvida. Ela tenta escapar daquele submundo, mas como é uma imigrante refugiada e precisa ajudar a irmã de alguma forma, se vê envolvida cada vez mais. Vale lembrar que a época retratada no filme o EUA é um momento de proibições e conservadorismo de costumes, o que mostra o quanto aquela sociedade tem suas contradições, já que são através de policiais e pessoas influentes que aquele local se mantém.
Analisando o título original, que traduzido seria provavelmente “a imigrante”, é possível ver que até nesse momento pode haver alguma dualidade, porque mesmo que aparentemente se refira ao personagem de Ewa também pode ser aplicado a Bruno. Apesar da relação de dominância dele para com ela, pode-se ver que ambos são imigrantes, fora daquele mundo, portanto ambos vivem na ilegalidade, no submundo, só conseguem sobreviver no lado escondido dessa sociedade. Com o surgimento do primo de Bruno, Orlando, a relação de antagonia entre Ewa e Bruno se torna ainda mais complicada. Mágico charmoso e simpático, Orlando encanta e conquista Ewa e é o contraponto a relação de dominação em que ela se encontra com Bruno. Apesar disso, o roteiro não tenta oferecer respostas fáceis com personagens unidimensionais, pelo contrário, o filme brinca com essa dualidade dos personagens. Bruno, por exemplo, ao mesmo tempo que estabelece uma relação fria e dominante com Ewa, desenvolve uma paixão e carinho pela moça que são contrapostas com suas atitudes, o que torna seu caráter questionável a quem assiste. Já Orlando, apesar do charme e da preocupação com Ewa, parece um daqueles sempre a esconder algo, pelo seu modo irônico e galanteador. Com relação a essa situação, o diretor brinca com sua personalidade ambígua, num diálogo todo filmado num palco, no qual Orlando convida Ewa a fugir com ele. O palco não parece a toa nesse momento, como se representasse uma encenação do personagem, o próprio teor sonhador e esperançoso da conversa ou até mesmo a própria consciência de Ewa, tentada para fugir com o rapaz.
Era uma vez em Nova York é um filme principalmente das incertezas. Seus personagens incertos, as atitudes dúbias, o desfecho em aberto, um filme construído não para confundir, mas para mostrar que nada é certo, principalmente numa cidade que recebe tantos sonhos, mas que possui tantas contradições e mistérios. O plano final que contrapõe os personagens de Cotillard e Phoenix é um reflexo dessas incertezas. De um lado Ewa, vista através de uma janela indo embora num barco com névoa a lhe cercar, em direção a um destino sem perspectivas, e de outro Bruno, arrasado pelo seu último sacrifício e fisicamente em frangalhos, também com destino nebuloso. Vizualizamos ambos de longe, nunca saberemos o que vai acontecer, mas como o filme muito mostra durante suas duas horas, o destino não é certo, ele é nebuloso, distante, imprevisível.
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