Inquilinos (Os incomodados que se Mudem), Os
A chegada de novos inquilinos para a edícula da casa de um vizinho é o ponto de partida para Sergio Bianchi filmar as múltiplas faces que a violência adquire no cotidiano de uma família da classe trabalhadora na periferia de São Paulo. A casa da família nos é apresentada num travelling externo ao som de uma briga conjugal. Entrando na casa, perceberemos que esse som vem da novela que a filha do casal assiste na televisão enquanto faz seu dever de casa da escola. A brincadeira do diretor entre a expectativa criada e a realidade, então, já nos alerta para as formas aparentes de violência que estarão presentes, escamoteadas dentro da rotina diária da família.
Enquanto Iara narra a história -de violência- de Terezinha, Valter quase não presta atenção porque está fazendo outra coisa. Ao terminar de consertar o carrinho do filho, ele muda de assunto sem fazer um comentário sobre o que a esposa estava falando. A filha do casal, Fernanda, senta então à mesa de jantar pensando na novela e resume o livro que está lendo com irritação:
Fernanda: “É a história de uns homens maus, que chegam numa cidadezinha calma, bagunçam tudo, no final eles morrem e todo mundo fica feliz.”
Valter: “E porque que eles eram maus?"
Fernanda: “Eles eram maus porque o livro queria que eles fossem maus, porque eles não eram bons, e porque eles nasceram maus.”
Valter (rindo): “Entendi, o livro não conta. É isso?”
Fernanda: “A minha história é assim, e a do livro é besta.”
Esse diálogo entre Fernanda e Valter representa uma mise en abyme do próprio filme de Sérgio Bianchi. As buzinas que tocam ao final da conversa anunciam para a família e para a comunidade que os inquilinos de Consuelo chegaram para ocupar a edícula vazia de seu Dimas e, aparentemente, bagunçar o calmo cotidiano do bairro. Mas não podemos nos deixar enganar novamente: se o enredo do livro representa o enredo do filme, nosso entendimento sobre Os inquilinos deve ir além da visão infantil de Fernanda. Esse trabalho, portanto, pretende analisar e interpretar a obra, tendo como fio condutor o diálogo acima.
História de uns homens maus...
A primeira fala de Fernanda resume o livro e o filme, com algumas diferenças e outras semelhanças não aparentes. Primeiro, há no resumo um aparente deslocamento do protagonismo, que no livro é dos homens maus em relação à cidadezinha calma. Se Valter é o protagonista do filme, o é na medida em que o filme procurar aderir, em grande medida, ao seu ponto de vista dos acontecimentos. Nesse sentido, ele não é o protagonista por excelência, que realiza as ações e move o enredo da narrativa, papel que cabe muito mais aos inquilinos. As ações de Valter, inclusive, se parecem mais com respostas, inúteis ou estranhas, ao que ocorre na casa ao lado. É assim com a decisão de soltar o cachorro quando descobre que os inquilinos são criminosos, com a tentativa de reivindicar a carteira assinada para dar segurança aos filhos pequenos e até mesmo na tentativa de impedir o irmão de Iara de ‘pegar’ os inquilinos na porta de sua casa.
Já a cidadezinha calma é uma semelhança apenas aparente. A calmaria do bairro é uma superfície que esconde uma bomba prestes a estourar. Desde a imagem inicial, a onipresença da violência é constantemente reiterada na tela, das mais diversas formas, como na brincadeira entre meninos na rua de cima do bairro, em que “cada tiro mata um”. Ou seja, não existe calmaria na cidade/bairro. A bagunça, ainda nesse sentido, também é uma semelhança aparente, porque os novos vizinhos apenas externalizam a confusão em potência que já estava presente no bairro, o que fica claro em inúmeros momentos, como no cruzamento do olhar de Valter com o de um tarado que observa sua filha Fernanda dançando na rua de cima, ou na espetacularização da violência representada pelas vizinhas que procuram Iara para ver a porta da casa de seu Dimas cheia de sangue: “Ai mas dá pra ver tudo mesmo” fala a vizinha, indicando que Iara já havia conversado sobre isso com ela.
No filme, os inquilinos não morrem. Mas a prisão de dois deles a plena luz do dia, num final de semana com boa parte da comunidade na rua observando, parece passar a mensagem de que a ordem também será restaurada na comunidade como na cidadezinha calma. A última cena, portanto, com a entrada dos novos inquilinos na casa de seu Dimas, é o grande desfecho, e acerto, do filme, reforçado pela imagem anterior da aurora de um novo dia e pela lembrança ainda fresca do poema de Drummond.
E porque que eles eram maus?
Percebendo que a explicação de Fernanda é insuficiente, Valter instiga a filha a elaborar sobre o livro. A pergunta parece dar a entender que o pai não crê que os homens possam ser essencialmente maus. O que vemos ao longo do filme, no entanto, não é exatamente isso. Se a demora da descoberta de que os vizinhos são criminosos sugere uma recusa, por Valter e pela câmera, em préjulgar os vizinhos como maus, essa recusa de Valter não será por uma posição livre de preconceitos, mas por conta de sua inação, pelo aprofundamento da cisão individualista de nossa sociedade, determinada pela propriedade privada e reiterada diversas vezes no bordão “cada um por si” que ele ouve da boca de praticamente todos os personagens. A posição de Valter fica clara, então, quando ele interpreta o poema de Ferréz em sala de aula, respondendo “porque tem gente que prefere ser rato, cobra, gosta de ficar no chão”.
Assim, a resposta tautológica de Fernanda sintetiza então o que será a ideia do próprio Valter no filme, de naturalização da maldade, e a coloca como uma ideia infantil. “Nenhuma mulher de homem fraco é boa não”, “mulher, tem das boas e das que não presta” concordarão pai e mãe sobre Consuelo após os filhos irem dormir, nesse mesmo dia de chegada dos novos inquilinos. Essa tautologia também encontrará sua correspondência mais tarde numa fala do próprio Valter: “a confusão é o barulho, a confusão... é a confusão”. A dificuldade do protagonista em encontrar uma palavra para designar a situação que está vivendo reflete a falta de uma saída para além da lógica individualista da propriedade. Valter não quer que o irmão de Iara pegue os inquilinos na porta de casa para não arrumar confusão para si próprio: “ a Iara te ligou, mas quem cuida da minha família sou eu ”.
A pergunta de Valter sobre o porquê da maldade dos homens no livro de Fernanda fica, assim, sem resposta, não apenas por conta da filha, mas porque isso não interessa ao pai, que ri da tautologia mais pelo desinteresse de Fernanda em relação ao estudo.
A minha história é assim, e a do livro é besta
A conclusão da filha configura no filme essa mesma cisão individualista, ao distinguir a história resumida e o enredo do mesmo livro: o seu resumo é a sua verdade, é o seu ponto de vista e, como vimos, é também o ponto de vista de Valter. Acaba por configurar, também, a distinção entre a sua perspectiva infantil, compartilhada pelo pai, e o enredo do filme. Os inquilinos, portanto, deve ser entendido através de uma perspectiva totalmente não aderente ao ponto de vista de filha e pai. Se para ambos os homens são essencialmente maus, esse pensamento é enunciado como infantil; se a comunidade estava calma, o filme mostra que era apenas aparência; se os inquilinos chegam e bagunçam a ordem, fica claro o caos aparente que reinava na comunidade; se a ordem é restaurada com a prisão dos criminosos, Bianchi afirma que o caos é só uma aparência, quando o verdadeiro motivo da morte de seu Dimas chega organizado e com metralhadoras, ecoando a aurora mal redimida de Drummond e o medo da paz, aparente como percebe o colega de Valter na escola, em uma sociedade cada vez mais individual.
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