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Jean-Luc Godard e o Maio de 1968


O cinema não seria mais o mesmo após um grupo de críticos, no fim da década de 1950, decidir sair da teoria e passar para a prática, fazendo os próprios filmes e aplicando as mudanças em linguagem, técnica e narrativa que consideravam essenciais para a evolução e aprimoramento da arte. A nouvelle vague francesa precipitou o início de uma nova fase para o cinema a nível mundial, e os nomes que tomaram frente nesse movimento foram François Truffaut e Jean-Luc Godard, em filmes pioneiros como Os Incompreendidos (1959) e Acossado (1960).

Ao longo dos primeiros anos da década de 1960, Godard fundamentou seu início de carreira como cineasta em releituras de gêneros populares no cinema clássico americano, de modo a subverter as fórmulas e cacoetes e explorar de maneiras diferentes a linguagem e a narrativa tradicional. O resultado foi uma série de grandes e influentes filmes, como Uma Mulher é Uma Mulher (1961), Viver a Vida (1962), O Desprezo (1963), Bande à Part (1964), Alphaville (1965) e O Demônio das Onze Horas (1965). É notável perceber que, ao mesmo tempo em que se declarava apaixonado pelo cinema americano, o diretor também trazia uma latente crítica política e social, assim como se mostrava incomodado com o imperialismo cultural ianque, como denunciam filmes como Made in U.S.A. (1966). Aos poucos, seu lado crítico prevalecia sobre o apaixonado, e isso refletia uma mudança social, política e cultural que passava a ferver entre a juventude e a vanguarda francesa. Lá fora, se aproximava o lendário ano de 1968, momento em que um movimento estudantil francês revolucionaria para sempre a história, e esse contexto pode ser sentido nos filmes do diretor no período.

O cinema de Godard não serve somente para se medir a situação que culminaria no movimento estudantil, mas ele por si se transformaria para sempre após esse marco. O diretor, inflamado pela urgência política que aquela revolução significava, abandonava aos poucos as brincadeiras com os gêneros cinematográficos e se voltava cada vez mais para a arte como instrumento de contestação, resistência e combate. É interessante analisar esse crescente ao assistir em série os filmes feitos pouco antes de maio de 1968 e pouco depois. Essa sequência demarca o limite entre o cineasta apaixonado e subversivo e o artista radical que nasceria a partir dos efeitos pós-maio de 1968, desde Masculino, Feminino (1966) até Tudo Vai Bem (1972). 

Obviamente, não somente Godard assimilava esse contexto em seu cinema. Em Beijos Proibidos (1968), por exemplo, Truffaut indiretamente associou o evento à saga de seu alter-ego, Antoine Doinel (Jean-Pierre Leaud), mesmo não sendo exatamente um filme político. No entanto, foi provavelmente Godard o cineasta da nouvelle vague que mais radicalizou sua arte durante o período, nunca mais voltando a fazer cinema da mesma forma como fizera antes. Ele já apresentava indícios dessa virada radical em 1966, com Masculino, Feminino, quando o discurso político, que anteriormente servia apenas de pano de fundo em outros filmes, ganhava um espaço maior e previa uma vindoura mudança significativa de comportamento do jovem comum perante o sistema e o governo. 


A partir de 1967, Godard anteciparia todo o sentimento no movimento de maio de 1968 através de 4 filmes limítrofes em sua carreira. A Chinesa é o mais relevante deles dentro desse contexto, pois foca no núcleo estudantil e trata diretamente a visão jovem sobre a política gaullista, propondo ideias de desobediência civil e questionando a geração da contracultura, que mais idealizava do que agia. Ciente do caráter político da obra, Godard quis fazer de A Chinesa um tratado livre dos efeitos do tempo, classificando-o como um filme em construção e deixando em aberto qualquer conclusão. Hoje, o filme é visto como profético, e não à toa. Basta assisti-lo e perceber ali muito do que se veria na prática no ano seguinte, além de todo o mix de cultura pop e pensamento marxista. Na mesma pegada e no mesmo ano, ele faria Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela, um misto de documentário e ficção sobre a vida na Paris dos anos 1960 e as mudanças no cenário que alteraram para sempre a vida na cidade, em mais um ataque direto ao capitalismo burguês alienado que ocasionava a passividade da população perante as escolhas do governo. Não contente, Godard ainda se juntou a Agnès Varda, Chirs Marker, Alain Resnais, William Klein, Joris Ivens e Claude Lelouch em Longe do Vietnã, um projeto coletivo anti-bélico, a favor da população vietnamita, que à época sofria diretamente e mais do que ninguém os efeitos da Guerra Fria. 

Por fim, Godard ainda faria aquele considerado seu trabalho limítrofe e que redefiniu seu cinema dali em diante para longe do aspecto solar e saudoso do início de carreira: Weekend à Francesa. Em tom fatalista, o diretor massacrava sem receios o capitalismo na esfera social e sua influência no próprio cinema mundial, renegando a industrialização e comercialização da arte e abraçando de vez sua veia marxista. A inquietação se reflete no experimentalismo técnico e realiza uma impressionante subversão de linguagem, trabalhando o iminente colapso social/artístico em uma histórica cena em que um carro rompe o próprio frame e salta pra “fora do filme”. Tudo ao redor do casal de Weekend à Francesa está desmoronando, a sociedade está literalmente se desfazendo e só resta a eles fugir, fugir e fugir sabe-se lá para onde, nunca conseguindo de fato escapar daquela situação-limite. Isso tudo se traduziria na vida real quando mais? Exatamente em maio de 1968. 

Uma vez dentro do movimento, Godard traria a documentação daquilo que ele tanto previu e antecipou em filmes anteriores. Sympathy for the Devil é ao mesmo tempo um relato sobre o processo criativo da banda Rolling Stones durante a gravação de um novo disco, e uma reflexão sobre as implicações econômicas e sociais resultantes das revoluções de maio de 1968. Já Um Filme como os Outros marca o início da parceria de Godard com Jean-Pierre Gorin na criação do Grupo Dziga Vertov, um projeto coletivo que reunia um cinema fundamentado nos interesses maoistas dos dois. Centralizado em um grupo de estudantes conversando sobre política, Godard insere na montagem trechos filmados em frente a uma fábrica de automóveis durante as manifestações de maio de 1968. Cria-se uma narrativa que contrapõe a visão dos estudantes e dos grevistas e faz um balanço dos efeitos do movimento para a vida cotidiana do povo francês. É provavelmente o documento mais contemporâneo ao movimento e o que traz a impressão mais imediata dele sobre a classe operária. 


A aliança com o Grupo Dziga Vertov refletiria quase sempre nas consequências de maio de 1968 tanto na França quanto no mundo, culminando no rompimento oficial de Godard com a nouvelle vague através de A Gaia Ciência (1969), quando o diretor renegou qualquer princípio que o tenha antes interessado na nova onda francesa e passou a assumir de vez seu cinema de engajamento político. Antes da dissolução do Grupo Dziga Vertov no início dos anos 1970, Godard faria sua principal reflexão sobre os efeitos pós-maio de 1968 com Tudo Vai Bem, uma ficção sobre uma jornalista americana e um cineasta francês feitos de refém por trabalhadores de greve em uma fábrica de produtos alimentícios. É o retorno de Godard à narrativa linear após inúmeros trabalhos experimentais, e momento de balanço no qual o diretor finalmente faz suas considerações finais sobre o significado das manifestações estudantis que mudaram para sempre a França, agora privilegiado pelo distanciamento de tempo necessário para uma visão mais imparcial e menos inflamada sobre todo o quadro. 

Godard influenciou todo o cinema com seus filmes da nouvelle vague, mas a efervescência do cenário político e social da França dos anos 1960 acabou direcionando seus interesses para outro foco. De entusiasta do cinema clássico e revolucionário cineasta da desconstrução e da reinvenção, ele passou a importante engajado político que usou do cinema para prever, analisar e por fim refletir todo um movimento que transformaria o mundo na tumultuada segunda metade do século XX. Sua história quase se confunde com a história da própria França contemporânea e até hoje repercute tanto na sociedade e política quanto no cinema. Nenhum outro diretor foi tão interligado a essas manifestações revolucionárias. O mundo não seria mais o mesmo depois de maio de 1968 e ao mesmo tempo o cinema também não seria mais o mesmo depois de Jean-Luc Godard. 

Comentários (2)

Chcot Daeiou | quinta-feira, 03 de Maio de 2018 - 11:42

quero ver o filme do hazanavicus sobre.

Mateus da Silva Frota | sexta-feira, 25 de Maio de 2018 - 14:14

Sensacional e extremamente necessário este escrito. Adoro quando transformam o cinema em protesto político, em arte revolucionária e principalmente quando a crítica decide fazer um estudo histórico da evolução cinematográfica.

Parabéns pela postagem, Heitor.

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