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Há videoclipe em Corra, Lola, Corra?

Para a pós-modernidade a arte não tem objeto, ela apenas obedece a processos. Há apenas desconstrução, antíteses. Para o cinema começar a incorporar esse regimento em sua linguagem foi preciso uma saturação da estrutura clássica narrativa, que já predominava há décadas, principalmente no cinema hollywoodiano. Foi um grupo de críticos e cineastas franceses, encabeçados por Godard, Chabrol, Resnais, Truffaut e Rohmer que quebrou esse paradigma clássico e desenvolveu um cinema em que a câmera, o olhar, a percepção são muito mais importantes que a significância narrativa. O movimento criado por esses mestres, a chamada Nouvelle Vague, não só consolidou uma nova forma de se fazer cinema, como influenciou cinematografias de outras partes do mundo, como o Brasil e seu Cinema Novo. O próprio cinema norte-americano só foi se recuperar, já na década de 1970, com a chegada de Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e Steven Spielberg, que incorporaram essas estéticas mais heterodoxas aos seus modos de fazer cinema.

Scorsese, por exemplo, sobre os escritos de Paul Schrader, criou o insandecido Travis Bickle, personagem que vagava nas ruas de Nova Iorque buscando fugir da solidão em Taxi Driver (1976). Depois foi a vez de Werner Herzog embrenhar um imenso barco a vapor adentro da Floresta Amazônica em Fitzcarraldo (1982), testando nossa capacidade de percepção sobre o que é plausível ou não. No mesmo ano, Ridley Scott brincou com a queda do paradigma da identificação em Blade Runner – O Caçador de Andróides. Ou ainda Wim Wenders, que pintou o celestial em escala de cinzas e o terreno com toda a cartela de cores na construção de seu Asas do Desejo (1987). Enquanto isso, o videoclipe surgia e se firmava como uma nova verve audiovisual, adotando referências das artes antecessoras, principalmente do cinema, cujo parentesco é o mais próximo.

Nos anos 1990 e 2000 a explosão pós-modernista, inevitável, começou a criar tendências que acabaram digeridas, seja com Quentin Tarantino fragmentando histórias de forma não-linear em Pulp Fiction – Tempo de Violência (1994) ou seja com Sam Mendes orquestrando um belo bailar de um mero saco de lixo no prólogo do perturbador Beleza Americana (1999). Fora do esquema norte-americano, vários outros cineastas tentam de alguma forma “remodelar” o cinema. Na atualidade, quem mais se aproxima disso é o tailandês Apichatpong Weerasethakul, que em Mal dos Trópicos (2004) e Síndromes e um Século (2006) propõe um cinema muito mais sensorial que racional. É a estética se tornando paradigma, paradigma este que atingiu um de seus auges com a suposta experimentação proposta pelo cineasta alemão Tom Tykwer em Corra, Lola, Corra (1998).

O fiapo de roteiro – mulher recebe telefona de namorado traficante, este dizendo que ela tem vinte minutos para conseguir uma enorme quantia em dinheiro ou algo trágico acontecerá –, personagens tipados sem sequer um grau de profundidade, trilha sonora eletrônica intrusiva e demarcante do ritmo tanto quanto a montagem e a repetição tríplice de uma grande seqüencia estrutural, criando uma brincadeira alegórica acerca a teoria do caos – todo esse conjunto de elementos críticos na formação imagética-sonora de Corra, Lola, Corra poderiam classificá-lo não só como uma obra propriamente pós-moderna, mas além, uma obra de características carregadas dos videoclipes.

Na época de seu lançamento, muitos associaram (e ainda associam) de forma errônea a construção de Corra, Lola, Corra em cima dessa estética videoclíptica. O fato é que o videoclipe se apropriou de técnicas cinematográficas, muitas vezes as aprimorando, e que hoje as duas linguagens audiovisuais se tornaram um círculo de alimentação mútuo. As ferramentas que Tykwer utilizou em seu filme, e que seriam oriundas do videoclipe, são facilmente encontradas em filmes de datas mais antigas que a gênese videoclíptica.

A montagem acompanhando a música, por exemplo, Einsenstein já tinha proposto e colocado em prática em O Encouraçado Potemkim (1925), executando a sua teoria sobre a montagem harmônica –  também neste filme temos o exemplo mais clássico do uso de câmera lenta, na seqüência da escadaria. O próprio Einsenstein, em Outubro (1928), criou a abertura na montagem para a configuração de histórias paralelas com a distensão do tempo na montagem – Lola, Corra, Lola utiliza-se desse artifício várias vezes de forma a criar pequenas historietas para o futuro de personagens secundários. O uso de animação intercalando imagens live action na composição da narrativa já tinha sido usada por Walt Disney em A Canção do Sul (1946), dirigido por Harve Foster e Wilfred Jackson. A repetição de uma narrativa, que muitos consideram a grande “sacada” do filme de Tykwer, já tinha sido apresentada, por exemplo, por Alain Resnais em O Ano Passado em Marienbad (1961), usando a lógica dicotômica do sonho versus realidade embasada no noveau roman do recém-falecido Alan Robbe-Grillet (também roteirista do longa-metragem). Mais antigo ainda é O Grande Golpe (1956), de Stanley Kubrick, que repete uma mesma seqüência várias vezes, cada vez sob a perspectiva de uma personagem. Se voltarmos ainda mais no tempo, mais exatamente 1950, chegamos a Rashomon, de Akira Kurosawa, que nos apresenta três pontos de vista diferentes sobre um crime brutal.

O uso da câmera na mão, bem usado em Corra, Lola, Corra e em grande parte dos audiovisuais da atualidade já tinha sido usado pelo mestre F.W. Murnau em A Última Gargalhada (1924), abandonando o tripé e a rígida decupagem para adentrar na diegese realista. Já Chaplin tinha grande costume em usar a câmera acelerada em suas comédias de situação. E em relação à interatividade da história, quando pequenos detalhes alteram toda uma narrativa, há os exemplos de Quem é o Infiel? (1949), de Joseph L. Makiewicz e Na Solidão da Noite (1945), dirigido por Alberto Cavalcanti, Charles Crichton, Basil Dearden e Robert Hamer. E a subdivisão da tela em vários quadros nós tivemos, por exemplo, em Crown – O Magnífico (1968), de Norman Jewison.

Todos esses exemplos citados acima corroboram a idéia de que técnicas ditas originárias do videoclipe na verdade são essencialmente cinematográficas. O que o videoclipe fez foi aprimorar essas técnicas, utilizando-as muitas vezes de forma excessiva e misturando-as, criando ambientações que muitas vezes se aproximam do caótico. É aí que se constrói a aproximação entre a linguagem videoclíptica e Corra, Lola, Corra: o filme bebe na fonte dos music videos na concepção da super-utilização de conceitos cinematográficos preexistentes, construindo e desconstruindo a imagem. É o pós-modernismo em seu ápice na linguagem audiovisual.

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