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O encontro de Marlene Dietrich e Von Sternberg

Quando o diretor austríaco Josef von Sternberg conheceu a aspirante a atriz Marlene Dietrich, algo de muito mágico e raro aconteceu. O encontro dos dois rendeu uma das parecerias mais longevas e de sucesso no cinema, catapultando a atriz à condição de estrela e fazendo de seu par de pernas um dos maiores arrasa-quarteirões da época. Mas Marlene não era apenas beleza, não era apenas talento, não era apenas estrelato. Era uma mulher muito à frente de seu tempo, capaz de arriscar sua posição e sua vida para combater as desigualdades de gênero na indústria, além do próprio nazismo. Ao ser notada durante uma apresentação musical nos palcos por von Sternberg, ela nasceu para o mundo e se firmou como um dos maiores ícones feministas de todo o cinema.
Sternberg rapidamente percebeu em Dietrich a presença hipnótica e a beleza etérea, o que fazia dela a principal e única atriz possível para encarnar a personagem Lola Lola em Anjo Azul (Der Blaue Engel, 1930), uma cantora de cabaré que encarna em si a própria ideia do pecado cristão, cheia de malícia, erotismo, curvas e encantos mil, e que leva um professor universitário à loucura. Rapidamente a parceria foi notada por Hollywood e a dupla ingressou em uma parceria que renderia grandes obras-primas, sempre dentro de uma fórmula infalível em que Sternberg se limitava a valorizar as qualidades de sua musa e adaptar todas suas personagens à persona cativante dela. 
Quatro dos inúmeros filmes em que Sternberg dirigiu a atriz estão reunidos na bela coleção Marlene Dietrich, da Obras-Primas do Cinema. O primeiro de todos é Marrocos (Morocco, 1930), feito na rabeira do sucesso de Anjo Azul, já nos EUA, para onde a dupla se mudou após fechado contrato com a Paramount, que pretendia fazer de Dietrich uma concorrente à altura de Greta Garbo, que até então era a estrela exclusiva da Metro e que também encarna ao tipo mulher fatal, embora menos sensual. Desonrada (Dishonored, 1931), também parte da coleção, é feito logo em seguida e, assim como os filmes anteriores, enaltece a estrela não apenas por colocá-la num papel desafiador, mas também por conta de uma mise-en-scène sofisticada e elaborada por Sternberg para enaltecer ao máximo a presença marcante da atriz. Iluminação, figurinos, fotografia, maquiagem – tudo colabora para fazer dela uma figura quase inumana de tão angelical e ao mesmo tempo diabólica. 
Em A Vênus Loira (Blonde Venus, 1932), segundo filme do primeiro DVD da coleção, Dietrich encara uma personagem dentro desse mesmo molde dos filmes anteriores, porém motivada por valores mais sólidos, voltando para o mundo dos bares e cabarés para poder pagar o tratamento de seu marido doente. Aqui Sternberg explora o lado mais humano e vulnerável que Dietrich era capaz de mostrar, revelando uma fissura de carinho e amor em sua fachada gélida de mulher inalcançável. Já na aventura O Expresso de Shangai (Shanghai Express, 1932), primeiro filme do segundo disco, Dietrich encara um de seus momentos mais feministas, ao ser colocada no centro de um conflito internacional, no qual somente suas habilidades femininas poderão trazer a trégua necessária. 
Nos filmes de Sternberg, Dietrich quase nunca toca o chão, está sempre erguida em palanques, tronos e trapézios, sobrevoando os homens e se colocando acima deles sem muita dificuldade. Era justamente essa a ideia do diretor, a de colocá-la num patamar de superioridade não somente sexual, mas também emocional, psicológico e até mesmo político. A natureza indomável da atriz era permitida se extravasar para além dessas personagens e por isso essa foi uma das parcerias mais impressionantes entre um diretor e uma atriz em toda a história do cinema, um desses casos em que almas gêmeas na arte se encontram no momento certo. Dois documentários nos extras da coleção ajudam a enxergar melhor um pouco dessa grande mulher que até hoje permanece numa posição quase celestial no imaginário coletivo do público cinéfilo. 

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