Saltar para o conteúdo

Artigos

Dr. Mabuse e os medos de um século


Uma quadrilha golpista atacando a bola de valores. Um terrorista à solta em Berlim. Uma rede de televisão capaz de atingir as massas para fazer o mal e controlar as pessoas. Por trás de tudo, um único personagem: o terrível Dr. Mabuse. Criado pelo mestre Fritz Lang com base nos romances de Norbert Jacques, o vilão de uma das trilogias mais assustadoras do cinema surgiu nos anos 1920, reapareceu na década seguinte e voltou uma última vez em 1960 para concluir um longo e incisivo retrato do cineasta sobre os medos e males que definiram o século XX. 

Recentemente, a trilogia restaurada foi lançada em DVD pela distribuidora Obras-Primas do Cinema. A coleção Dr. Mabuse de Fritz Lang é uma das maiores pérolas lançadas no mercado de home vídeo brasileiro, por incluir a versão original do primeiro filme (de 04h31!) e trazer mais de duas horas de extras, incluindo entrevistas com Fritz Lang, dois documentários sobre a trilogia, finais alternativos, entre outros especiais. O digistack com 4 discos vem acompanhado de mini cards que reproduzem as artes originais dos pôsteres de cada filme. 

O mais interessante na trajetória do Dr. Mabuse pelo cinema é, em um primeiro momento, perceber como cada filme delineia uma fase diferente na carreira de Lang e pontua seu amadurecimento, desde o fim da era do cinema mudo até o retorno de Lang ao cinema alemão, após um longo período na América. Se no primeiro filme notamos a forte relação com a psicanálise, um dos temas que mais fascinava o diretor, no último sua atenção recai sobre outros temas, como o espaço cada vez maior da televisão na vida das pessoas, e revela um Lang muito mais enxuto e cruel, já em total desilusão com sua Alemanha pós-guerras. 


Nos dois primeiros discos, Dr. Mabuse: O Jogador (1922) introduz o personagem e cruza diversos gêneros e escolas, como o expressionismo alemão e o horror, para tratar da decadência moral de um povo que ainda lutava para se reerguer após a Primeira Guerra Mundial, retratando o clima de desconfiança que imperava na época. O medo de uma crise financeira incapaz de ser superada se instaurava e entra em cena um médico com poderes psíquicos capaz de acessar informações confidenciais sobre a bolsa de valores. A longa saga do Comissário Von Wenk atrás do Dr. Mabuse se mostra um espiral de horror cada vez mais insano, com Lang conseguindo manter a tensão em alta por mais de inacreditáveis quatro horas de duração, nas quais experimenta técnicas de imagem muito à frente de seu tempo e cutuca temas caros ao povo alemão. 

Mais sofisticado e ambicioso, O Testamento do Dr. Mabuse (1933) trazia um pouco do filme de máfia, do policial e principalmente do drama sobrenatural em cima de uma labiríntica narrativa tríplice. Incorporado como uma espécie de Hitler, o Dr. Mabuse retornava como paciente de um manicômio, recitando frases que o próprio futuro ditador alemão usava em suas campanhas políticas. Com sua capacidade de manipulação de massas, ele se mostrava capaz de convencer multidões – tal qual Hitler em sua meteórica ascensão. Prevendo os horrores que viriam dessa onda nacionalista instigada pelo político, Lang fez de seu filme um tratado sobre o medo e a dor de um povo que voltava a caminhar para o abate após tão recentes perdas e sofrimentos. 

Já em Os Mil Olhos do Dr. Mabuse (1960), Lang analisava os efeitos das duas guerras mundiais sobre as pessoas, desmaterializando seu vilão da condição de um ser humano e transformando-o num mal eterno e de alcance ilimitado que se propaga através dos meios de comunicação. Com uma perspectiva mais voltada aos males do avanço da tecnologia, em uma crítica feroz à televisão e seu poder de manipulação e dominação das massas, Lang encerrava sua trilogia – e sua filmografia – com uma obra-prima sombria e pessimista sobre um mundo que se viu drasticamente mudado após passada a primeira metade do século mais sangrento da história. Ficava o alerta de que o mal agora era globalizado e cada vez mais destrutivo. 

Para quem ainda não assistiu esses três filmes gigantes que traçam o retrato de um século e assimilam a evolução de um dos cineastas mais importantes de todos os tempos, a nova coleção da Obras-Primas do Cinema é item indispensável. Não deixem de conferir!

Comentários (0)

Faça login para comentar.