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A delicadeza de Agnès Varda


De uns cinco anos para cá tem sido tendência no mercado de home-vídeo brasileiro as coleções de DVDs voltadas a explorar a filmografia de um diretor específico, muito mais caprichadas e cheias de extras, ao contrário das antigas coletâneas simples, de discos sem nenhum cuidado especial. O resultado foi o resgate da obra de gênios como John Cassavetes, Mario Bava, Buster Keaton, Carl Theodor Dryer, Dario Argento, David Cronenberg, Orson Welles, Kenji Mizoguchi, Wim Wenders, Satyajit Ray, entre outros. O que de fato fazia falta nessa onda de coleções de diretores era uma voltada às cineastas mulheres, sempre preteridas no mercado de home-vídeo. Felizmente, chega agora uma coleção da Obras-Primas do Cinema com 4 filmes de ninguém menos que Agnès Varda, a mais importante diretora do cinema francês e grande expoente da nouvelle-vague. 

A coleção Agnès Varda é, além de um reconhecimento à obra da aclamada diretora, uma oportunidade única de acesso às obras mais importantes de sua carreira em boa qualidade de imagem e som. Os dois DVDs da caixa abrigam 4 filmes e um conteúdo extra de quase uma hora, com entrevista com Varda, depoimentos sobre os filmes e especiais. Experimental, feminista, comentarista social e grande documentarista, ela tem uma das filmografias mais ricas e inexploradas do cinema francês. A seleção da Obras-Primas do Cinema equilibra títulos essenciais com outros mais raros e capta bem todos os lados do cinema de Varda. 

No primeiro disco, dividem espaço seus dois filmes mais conhecidos e canônicos. Le Pointe-courte (1955) é, junto de Nas Garras do Vício (Le Breau Serge, 1958), um dos embriões da nouvelle-vague francesa, que explodiria de vez nos anos seguintes, em clássicos como Hiroshima Meu Amor (Hiroshima Mon Amour, 1959), Os Incompreendidos (Les Quatre cents coups, 1959) e Acossado (À bout de souffle, 1960). Através de uma técnica de câmera na mão, paisagens externas e enredo simples, Varda desconstrói com sutileza e naturalidade o padrão narrativo clássico para mergulhar no íntimo de uma relação que está prestes a se romper. O encontro final do casal resulta num balanço do relacionamento e um confronto direto com os sentimentos mais fortes ainda prevalecentes entre os dois. O resultado é apaixonante. 

Ainda no primeiro disco, Cléo das 5 às 7 (Cléo de 5 à 7, 1962) é o filme mais famoso de Varda e até hoje muito aclamado pela crítica e pelos fãs da diretora. Já dentro da nouvelle-vague e autoconsciente como parte desse movimento, o filme acompanha um dia na vida de uma cantora à espera do resultado de um exame que lhe revelará um diagnóstico que pode ou não mudar todo seu futuro. Acompanhado a personagem em tempo real pelas ruas de Paris, Varda mais uma vez renega qualquer artificialismo do cinema narrativo tradicional e aposta em experimentações técnicas que reforçam o caráter urgente, angustiante e melancólico do drama vivido pela protagonista. 

No segundo DVD, há espaço para dois filmes menos conhecidos de Varda, mas tão essenciais quanto os outros dois títulos. As Duas Faces da Felicidade (Le bonheur, 1965) é, provavelmente, a grande obra-prima da diretora, um delírio visual solar, delicado e idílico que divide espaço com uma atmosfera estranhamente melancólica. Entre a felicidade cotidiana e a tristeza da natureza humana, a diretora acha um ponto de equilíbrio para narrar a história de um homem simples que ama sua esposa e filhos, porém também se descobre verdadeiramente apaixonado pela amante, não sabendo que caminho escolher e se perguntando se deveria haver uma escolha. O segundo filme do disco, Sem Teto, Nem Lei (Sans toit ni loi, 1985), representa a fase da carreira de Varda já fora do ciclo da nouvelle-vague, se aventurando por um realismo quase documental sobre uma jovem andarilha que acaba morta pelo cortante inverno francês. Através de uma narrativa fragmentada em múltiplas perspectivas, a diretora aos poucos remonta um quadro incompleto e misterioso sobre a vida dessa jovem aos olhos das pessoas que a conheciam ou cruzaram seu caminho, erigindo assim um panorama sobre a solidão feminina em um mundo cruel para com seu sexo. 

Agnès Varda ainda é uma cineasta ativa e recentemente levou um Oscar honorário, além de ser indicada na mesma edição para o prêmio de melhor documentário, pelo filme Visages, Villages (idem, 2017). Uma das remanescentes da trupe de diretores que despontou na nouvelle-vague, ela é também uma das que mais soube se reinventar e continuar sempre atuante e relevante com seu cinema, que nunca perdeu o equilíbrio entre a crítica e a reflexão, a melancolia e a delicadeza. Essa coleção, com uma arte floral e cards que reproduzem a imagem dos pôsteres originais dos filmes, é uma pérola para quem há tempos espera pelo reconhecimento a uma das cineastas mais importantes e carismáticas de todos os tempos. Que outras diretoras ganhem também essa atenção em lançamentos futuros. 

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