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Diário do Festival do Rio 2015 - Dia 4

Chegou o dia da cervejada! Pelo menos um dia no Festa vão é preciso viver os filmes, os encontros e os amigos em forma não apenas de sala escura, mas também em forma de bar. A partida da mais que querida Cecília Barroso foi a deixa pra todo mundo largar do último filme para comemorar e também fazer o que mais gostamos: falar sobre cinema. Eu e um grupo de cinco amigos então fomos nos despedir da amada Cecília "bebemorando" o festival e botando na pauta os últimos filmes vistos, os festivais do ano, as fofocas gerais e a alegria de estar juntos mais uma vez.

O meu dia particular teve sabor forte de cinema nacional e eu consegui assistir a três filmes da mostra competitiva da Première Brasil desse ano, cada um numa esfera de qualidade diferente. Três exemplares fortes do nosso cinema, três vertentes de ideias e resultados diferentes, três momentos completamente distintos dentro da mesma edição. Curiosamente são cineastas de currículo curto, mas muita juventude interna. Gabriel Mascaro, Marcos Jorge e Marina Person não apenas competem entre si no Rio de Janeiro esse ano, mas mostram cada um uma faceta do quão multifacetado é a nossa cinematografia hoje, aberta a diversas linguagem e opções estéticas. 

Hoje não teve chuva mas teve discussões bobas que se acaloraram entre cinéfilos, e a cinefilia nem sempre anda de braços dados com a educação. Há de se manter a calma e a serenidade na hora de defender seus filmes preferidos, mas principalmente deve haver a prioridade do respeito mútuo pela opinião alheia, por mais que ela pareça ignóbil. Cada um tem a sua visão sobre as obras e elas devem ser ouvidas e aceitas, mesmo que não se concorde. São comuns discussões sobre opinião em festivais de cinema, mas nunca podemos nos deixar levar pelo deboche e pelo escárnio, mas é óbvio que o mundo não está livre desse tipo de pessoa. Quanto a mim, observo esse comportamento e morro de pena... O deboche é uma arma muito cretina numa discussão, e não compactuo com infantilidades. E tenho dito.

Vamos às observações de hoje? Simbora!



Boi Neon

Pelo interior do Nordeste brasileiro, observamos um panorama que tanto tem de inusitado quanto tem tentativa de normalizá-lo, sob todos os aspectos. O mais que jovem diretor Gabriel Mascaro vem acumulando acertos em profusão, e vira sua lente para outro microcosmos depois de Ventos de Agosto. O que ele mantém como ponto de interseção é o interesse pelo universo filmado num grau que é a pele o vetor de comunicação e união entre seus personagens. Num mundo regido pelas vaquejadas e rodeios mambembes, Mascaro consegue novo acerto e já chega entre nós com premiação dupla em Veneza e Toronto, distribuição garantida pro mundo e um impulso internacional que já nos coloca mais uma vez no mapa do mundo cinematográfico no mesmo ano em que Que Horas Ela Volta? brilhou e brilha, mostrando dois lados de um Brasil lá fora que é muito saudável enquanto exemplo de riqueza fílmica e enquanto diversidade de linguagem.

Mascaro propõe uma discussão mais que oportuna sobre reconhecimento de gênero e apropriação de certos signos para provocar uma bem-vinda confusão mental e embaralhar nossos (pré) conceitos e distinguir nada, mas sim confundir para deixar claro como todo e qualquer julgamento é babaca. Iremar é homem; Galega é mulher. Ele é um ajudante de peão que cuida dos bois, trata da arena onde acontecem os espetáculos e ajuda com os animais em geral, mas seu sonho é ser estilista, fazer roupas, assinar uma coleção de moda com direito a nome artístico. Ela é a motorista do caminhão da comitiva, mulher de voz ativa e abrutalhada pela vida, que cria uma filha pequena sozinha à espera de um marido que talvez nunca volte, mas que por baixo da aparente casca grossa mora um mulher que arde de desejo, pela vida e por uma nova paixão. Dois estereótipos ambulantes são abertos na frente do espectador e desconstruídos cena a cena, Iremar, Galega e toda a fauna que os circunda, num roteiro primoroso que joga o holofote para um lado para iluminar exatamente o que não se imaginava. 

Alia-se a isso a capacidade espantosa de Mascaro construir cenas antológicas já mostrada antes e aqui praticamente gritada a plenos pulmões; raras são as sequências não-inesquecíveis do filme, das mais aparentemente simples até as mais elaboradas, nada está na tela por acaso nem tem tratamento impactante de mise-en-scene, com nosso jovem maestro construindo fotografia com uma habilidade nunca menos que perfeita. Todo o elenco capitaneado por Juliano Cazarré e Maeve Jenkings brilha intensamente, e ambos têm cenas primorosas, daquelas pra levar pra vida. Daqueles filmes pra sentar e assistir babando por tantos motivos que é difícil escolher um só, mas o mais óbvio tá explícito e coloca a identidade de gênero na pauta do dia com rara beleza e sensibilidade.

Nota: 9,5
Título original: Boi Neon 



Califórnia

Quem tem mais de 30 anos como eu não só viveu os anos 80 intensamente como também não cansa de enumerar motivos, musicais e sensoriais, para retomar aquela década vez por outra. Se é assim comigo, imagino com Marina Person, que foi exorcizar seu passado e seus códigos particulares na sua estréia na ficção, o mais que delicioso 'California'. Filme sobe rito de passagem para a fase adulta tem aos montes por ano, raro é ver um protagonizado tão fortemente por uma mulher, brasileiro, passado nessa década específica e com discussões tão interiores... Aí é que o bicho pegou. Porque o filme pode e deve ser observado também como uma divertida comédia dramática teen bem escrita e com elenco muito bom, mas eu me identifiquei com o olhar de Teca para com o seu redor, e a tristeza inerente que essa menina pode até não se dar conta de que carrega, mas que existe e está lá escondido dentro dela. 

Teca está naquele momento-limite: virgem e apaixonada pelo cara mais lindo da escola, não sabe como lidar com a situação. Suas amigas já estão arrumadas e encaminhadas para perder o que ela nem está perto de conseguir, mas na verdade Teca tem coração e mente ligados em um só tema: a viagem para California que ganhou de presente dos pais. Morrendo de saudade do tio Carlos que há muitos anos reside nos EUA, Teca não vê a hora de ir se encontrar com o tio, matar as saudades e conhecer o lugar dos seus sonhos e na qual é inundada de informações e presentes pelas cartas e encomendas que recebe regularmente do tio. Aí, do nada, o jogo muda: Xande começa a prestar atenção nela, um novo aluno esquisitíssimo chega ao colégio e não para de segui-la e seu tio do nada volta ao Brasil antes dela ir, mudando os rumos de Teca e colocando tudo sob novas e nem sempre boas perspectivas.

Marina conhece muito bem o universo, a década e a trajetória que quer seguir no seu longa, então parece quase sempre tudo muito fácil pra ela, envolvida em todos os cantos do projeto. Parece confortável para tratar da história dessa menina que vive feliz com o deslocamento alheio, que vive a lamentar não ter a vida que gostaria e sonha os sonhos alheios, as viagens alheias, a ascensão alheia, a felicidade alheia. Em algum momento da segunda metade da projeção isso me bateu, mas foi tão intenso que nem consegui me emocionar, mas sim tive profunda vontade de abraçar Teca e dizer pra ela tentar se encontrar no mundo de outra forma que não em terceiros, mesmo sabendo que isso pode ser ainda tolerável em uma menina de 17 anos. O tempo vai fazer dos sonhos de Teca material realizado, e eu verdadeiramente me peguei torcendo pela felicidade dessa menina ao final, mas não aquela boba do "felizes para sempre", mas para que enfim Teca consiga se realizar plenamente. 

Nota: 8,0
Título original: California 




Mundo Cão

Diversas polêmicas já chegaram ao Festival do Rio desse ano, e uma delas é acerca da qualidade do novo longa de Marcos Jorge. O diretor chacoalhou nossa cabeça anos atrás com Estômago e agora retorna com um novo... Bem, não tão novo assim, porque Mundo Cão parece que foi feito por alguém que gostou muito de Estômago, mas não tem o talento de Jorge; o problema é que a pessoa é ele mesmo. Os elementos à disposição são os mesmos, amplificados: classe média baixa no foco principal, vivendo a vidinha dela e querendo ser feliz, até que a violência chega no núcleo dessas pessoas; pra coroar, uma reviravolta no final. Estaria Jorge pensando em transformar seu talento em fórmula? Se for esse o caso, acho que o diretor deveria pensar em começar tudo de novo porque esse primeiro passo foi só um dado na direção de se tornar um nome pop no cinema, e isso é o que de melhor eu tenho a dizer sobre o filme. 

Na trama principal acompanhamos um casal evangélico (Babu Santana e Adriana Esteves) que vivem felizes com seu casal de filhos. Santana trabalha na captura de cães perdidos das ruas de São Paulo e sua esposa faz calcinhas para vender, e assim ajudar na renda doméstica; além disso, Santana toca bateria e torce pelo Corinthians. Uma vida simples mas repleta de carinho, como o filme bem mostra. A vida do casal se transforma completamente quando Santana cruza o caminho de Neném (Lázaro Ramos), um perigoso bandido local, ao capturar um dos cães treinados desse homem sombrio. A partir desse fato, a vida de toda a família sofrerá uma série de revezes trágicos que farão Santana abandonar seu lado pacato e partir para um jogo de retaliação que obviamente não terminará bem, para muita gente.

A produção do filme teve o cuidado de pedir para não revelar spoilers e isso não será feito por aqui, mas a verdade é que os spoilers não importam muito tendo em vista que Jorge não está nos seus melhores dias como realizador. Independente do roteiro do filme só parecer "muito bom" (e não ser; uma quantidade absurda de furos e falhas se espalham a torto e a direito, mas as viradas que o mesmo promove vai tapar os olhos do espectador menos exigente), Jorge abusa do excesso de maneirismos visuais que só empobrecem esteticamente o filme, quando temos certeza que o efeito desejado era o contrário. Não vou nem citar o fato do filme continuar querendo parecer engraçadinho mesmo no turbilhão de tragédias que assolam a família, mas a verdade é que o filme é histérico e exagerado quase o tempo todo, sendo a culpa disso cair toda no colo de Jorge, praticamente amplificando o que que dizer e abolindo qualquer sutileza da produção. Tirando a filha mais velha do casal protagonista, o elenco não é culpado de nada. Tirando o fato de que Milhem Cortaz e Paulinho Serra não tem nada a fazer em cena, Babu Santana, Adriana Esteves e Lázaro Ramos estão muito bem e ajudam o patamar do filme a não ficar no inacreditável. Mas não conseguem também fazer milagre e transformar em ouro esse latão pintado no qual muitos espectadores já estão caindo, e ainda cairão muito até seu lançamento. 

Nota: 3,0
Título original: Mundo Cão

Comentários (9)

Pedro H. S. Lubschinski | quarta-feira, 14 de Outubro de 2015 - 08:32

Alexandre é o cara, sempre pensei que fosse xererecão/xererequinha e não pererecão/pererequinha. Valeu 😉

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