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Entrevista com o cineasta Laurent Cantet

Com a colaboração de Sarolta Kóbori

O cineasta Laurent Cantet, 47 anos, esteve no Brasil para divulgar Entre os Muros da Escola, seu premiado filme que recebeu a Palma de Ouro no último Festival de Cannes. Ele recebeu a equipe Cine Players em um aconchegante hotel em Santa Teresa, Rio de Janeiro, e falou sobre o processo de realização do filme e sua trajetória vitoriosa ao redor do mundo.


Cine Players - Como foi o processo de realização de Entre os Muros da Escola que o levou a adotar a essa linguagem semi-documental, tão diferente de seus filmes anteriores?

Cantet - Eu não cheguei a me fazer essa pergunta. Era óbvio para mim que a idéia era dar uma imagem de um sistema que ninguém conhece exatamente, exceto as crianças e os professores, e eles não gostam de falar sobre isso. Os professores porque são sempre julgados pelos pais e pela sociedade, e os muros da escola são as suas proteções; as crianças porque a escola é o único espaço de independência, e elas não querem que os pais saibam exatamente o que acontece dentro deste espaço. Então eu fiquei curioso em desvendar isso e mostrar uma imagem do que realmente poderia ocorrer.

 

Cine Players - O ponto em questão do filme é mesmo esse relacionamento entre professor e aluno?

Cantet - Sim, e eu também estava interessado em filmar a adolescência, esse momento da vida que você não sabe exatamente o que é e está apenas tentando entender as regras da sociedade, sempre sendo julgado por todos. É uma fase que um monte de coisas são decididas. Eu também queria mostrar as regras, a integração entre todas aquelas crianças, que vem de todo o mundo e possuem muitas diferenças. A classe se tornou algo como a fábrica de meu primeiro filme, Recursos Humanos, uma espécie de microcosmo.

 

Cine Players - Um microcosmo de uma França contemporânea, que ao mesmo tempo efervesce culturalmente com essa multidiversidade étnica e que sofre com graves problemas sociais?

Cantet - Acho que nós, franceses, somos muito conservadores na forma como consideramos nossa cultura. Nós temos uma idéia muito elevada dela, e não aceitamos que ela esteja em constante movimento. Todo o mundo está chegando de diferentes países, com outras formas de pensamento, construindo junto a nossa cultura. O que eu queria apresentar também no filme é a estigmatização dessas crianças e como isso é perigoso. Ninguém dá ouvidos a o que eles têm a dizer.

 

Cine Players - A sua carreira tem sido pautada basicamente pelos temas das relações sociais e de hierarquia. Por que essa temática está tão presente?

Cantet - Porque é uma das coisas mais interessantes nos relacionamentos, todo esse trabalho psicológico. Eu acho que nós realmente não enxergamos isso enquanto vivemos, é uma forma normal de ser em frente aos outros. Nós apenas tentamos mostrar que esta forma não é a única que constrói a sociedade. E é isso que eu gosto no personagem François: ele sempre tenta ter essa discussão de igual para igual com as crianças, mesmo sabendo que no fim terá a última palavra. Ele tenta evitar esse jogo hierárquico entre ele e as crianças.

 

Cine Players - E como foi essa experiência de trabalhar com atores não-profissionais?

Cantet - Foi uma experiência fácil e realmente divertida. Essas crianças estavam disponíveis para o trabalho durante seis horas por dia, concentradas naquilo que deveriam fazer. Nas primeiras tomadas eu dizia em que eu estava interessado e em que não estava. Então a gente refazia pela segunda, terceira vez... foi um processo longo. Mas eles realmente fizeram um belo trabalho de atuação, porque eles reproduziram e improvisaram, sempre respondendo às minhas indicações. E os professores de verdade ficaram invejosos em como pudemos focá-los durante as seis horas diárias. A crianças ficaram realmente envolvidas, elas trouxeram para si o que elas gostariam e isso foi muito interessante, essa absorção do que as pessoas reais têm a dizer sobre si mesmas. E foi divertido também porque acidentes sempre podem acontecer. Nada é exatamente como você tinha imaginado.

 

Cine Players - Quanto tempo de material gravado você teve disponível para a edição?

Cantet - Umas cinquenta horas, e isso é bastante coisa, mas não foi realmente um grande problema. O problema foi tentar descobrir o melhor momento, as melhores cenas. Foi um processo de edição bastante diferente dos que eu tinha feito.

 

Cine Players - O filme ficou muito diferente daquilo que estava planejado no princípio?

Cantet - Não muito. Esse tipo de mudança sempre acontece durante as filmagens. Existem coisas que me fazem decidir o que é mais interessante na hora de escrever. Já durante os workshops com os atores outras coisas me pareceram pertinentes ao filme. É um processo mutante.

 

Cine Players - E como foi essa relação com François Bégaudeau, que escreveu o livro que deu origem ao filme, além de co-redigir o roteiro e interpretar o papel principal?

Cantet - Nós trabalhamos juntos, houve uma grande cumplicidade. O filme foi realmente um trabalho de equipe, eu era apenas uma espécie de condutor. Ele estava presente em todos os workshops, praticou com todos os demais. Eu sabia o que esperar dele, que acabou se tornando uma espécie de um dublê meu dentro da cena. Bégaudeau estava apto a conduzir as crianças da forma como a gente esperava. A gente sentava junto para tomar café antes das filmagens e um ouvia ao outro sobre as cenas, sobre o que deveria ser feito para a construção das cenas.

 

Cine Players - Duas questões são levantadas durante o filme, mas não são realmente aprofundadas. Uma é sobre a suposta homossexualidade da personagem do professor, e outra a da imigração ilegal. Por que esse tipo de abordagem?

Cantet - Porque eu escolhi todo o tipo de situação que pudesse explicitar essa relação entre aluno e professor. Eu estava interessado em mostrar uma escola que não vive à margem da sociedade.  Mas eu não queria fazer um filme sobre esses temas, talvez o meu próximo seja sobre essas questões. Eu só queria mostrar como o professor lida com esses tipos de questões.

 

Cine Players - O senhor é considerado um dos cineastas mais políticos da atualidade. Qual diferença um filme pode fazer na sociedade?

Cantet - Eu receio que um filme nunca poderá mudar o mundo. Minha missão é fazer as pessoas responderem às questões que os meus filmes propõem. Mas eu não tenho respostas a dar. Creio que os problemas da sociedade são muito complexos e muito contraditórios. O que eu espero é que as pessoas possam retirar algo deles e que possam debater depois.

 

Cine Players  - Qual foi a sensação ao ganhar um prêmio tão importante como a Palma de Ouro em Cannes, no ano passado, um festival no qual um francês não ganhava há mais de vinte anos?

Cantet - Foi realmente um grande momento. Eu não sou muito nacionalista, mas foi algo que me comoveu, foi o prêmio mais incrível que eu já recebi na vida. Foi importante para mim que todos estivessem lá também, todas as crianças, os professores, os membros da equipe, porque o filme foi feito num espírito democrático. Todos tinham suas regras e eu ouvi o que eles tinham a dizer. Eu tinha que compartilhar o prêmio com eles. Fiquei muito contente porque meu propósito foi dar uma outra imagem dessas crianças. O momento em que eles foram até o palco comigo para receber a Palma de Ouro foi surpreendente e comovente, porque eles se sentiram de uma forma especial, se sentiram franceses de verdade. Eles estavam lá representando uma comunidade. E eu pude sentir que eles se sentiram realmente fortes. Isso foi mais especial que o prêmio.

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