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7+ | África Negra

A Viagem da Hiena (Touki Bouki, 1973), Djibril Diop Mambéty - Senegal

Antes de qualquer coisa, vale explicar algumas opções metodológicas: primeiro, eu poderia ter escolhido algum país africano para somente trabalhar com cineastas deste país. Talvez essa fosse a decisão mais sensata. E, sim, alguns países poderiam ter uma lista própria, por exemplo, Senegal ou Nigéria. Por outro lado, entendendo que o desconhecimento sobre o cinema africano é muito grande, uma seleção mais global e introdutória poderia ser mais útil para aqueles que estão começando sua aventura cinéfila. Em segundo lugar, vocês notarão que os filmes dessa lista pertencem ao que se costuma chamar de África Negra. Dessa forma, as filmografias de países da África do Norte não foram levadas em conta.

Os sete filmes selecionados são todos de diferentes décadas, desde os anos 60 até 2020. Por seu objetivo introdutório, acaba sendo impossível não dar mais espaço a Senegal, país da trinca fundamental – Faye, Mambéty e Sembène. Além disso, ficam como material extra dois filmes de dois artistas que dialogam diretamente com o continente africano, mas nasceram na Europa, ou simplesmente cineastas negros diaspóricos.

Esclarecidos esses pontos, apresento-lhes alguns realizadores que me parecem essenciais – embora, claro, um ou outro fique de fora (use os comentários para citar outros filmes africanos de que goste). Dito tudo isso, apertem os cintos, vamos tocar em grandes nomes da história da arte e, por consequência, filmaços, que é o que mais nos interessa por aqui.

O cinema africano é uma pérola, infelizmente, meio perdida nos olhares dos amantes do cinema por aí. Permite que nós, meros especuladores e seguidores de estereótipos construídos pela narrativa eurocêntrica, possamos desconstruir nossa percepção sobre o que é a África, e principalmente entender que não sabemos nada sobre o continente irmão, e, geralmente, o que sabemos está errado.

O esforço de cineastas, principalmente, da década de 60 e 70 para construir uma perspectiva mais representativa do africano ou da africana feito por eles próprios, além de possuir um intrínseco valor cultural, é um deleite para qualquer amante da sétima arte.

Sobre estes mesmos artistas, é importante relembrar, principalmente a um público majoritariamente brasileiro, que em 1965 vários cineastas e críticos do mundo todo se encontraram na V Resenha de Cinema Latino-Americano, em Gênova. Neste evento, entre outros temas, discutiu-se muito o trabalho de Ganga Zumba do Cacá Diegues como exemplo de cinema a ser pensado na África. Em interessante relato, Alex Viany, presente ao colóquio, afirma que os cineastas africanos que ali estavam viam no filme de Diegues algo similar ao que queriam fazer em seus países. Segundo o mesmo, a partir desse encontro na Itália, estabeleceu-se um intercâmbio entre os diretores africanos e brasileiros. Claro que caberia um exame mais profundo sobre esta afirmação de Viany, mas ao ver um filme como Emitaï (1971) de Ousmane Sembène, parece que realmente o cinema novo tem a sua colaboração nas escolhas estéticas nos filmes iniciais da África Negra.

Penso, então, que cabe a todos nós que nos propusemos a esta desconstrução mergulharmos em estéticas e propostas não só cinematográficas – que fique claro,  que privilegiem um olhar, no caso do africano, dele sobre ele mesmo. 

Esta lista, portanto, é um convite a escutar não só com os ouvidos, mas com todos os sentidos.

Espero que aproveitem.

Mandabi (1968), de Ousmane Sembène. Senegal

7. Mandabi (1968), Ousmane Sembène - Senegal

Qualquer lista que se proponha a fazer um apanhado de filmes africanos, possivelmente, começará com algum trabalho do Ousmane Sembène. Não porque somos pouco criativos ou por falta de opção, mas pela relevância deste realizador para a história da sétima arte, aqui ainda em seu segundo longa-metragem, mas já dono de uma mão única na abordagem narrativa. O filme se centra na aventura que o protagonista precisa viver para superar as barreiras burocráticas do estado senegalês. O que a princípio se desenha de maneira cômica, vai se revelando no decorrer narrativo um exímio exercício de leitura social sobre o país africano.

Considerado como o pai do cinema africano, além de ter construído uma filmografia pioneira, consistente e extremamente relevante, teve como uma de suas principais preocupações a desconstrução da imagem eurocêntrica da africana e do africano. Um de seus principais alvos foi Jean Rouch, cineasta francês reconhecido por seu trabalho documental e antropológico; acusava-o, sempre que podia, de paternalista e colonialista em sua abordagem fílmica.

Outro embate importante na carreira do realizador senegalês se deu com Léopold Senghor, poeta paisano do diretor, um dos primeiros a utilizar a Negritude como forma de identidade africana. Sembène não via muita procedência nos caminhos essencialistas de Senghor para enxergar o negro africano contemporâneo. Em alguns relatos ou entrevistas que o mostram discutindo as teorias artísticas formuladas pelo poeta, especialmente a Estética Negro Africana, dizia entender pouco do que lia e que lhe parecia mais o sexo dos anjos. Sembéne, principalmente nos seus filmes dos anos 70, disparava atrozes críticas ao governo de Senghor, (primeiro presidente da República de Senegal, eleito em 1960, permanecendo no cargo até 1980), e em represália teve filmes censurados no país, como Ceddo (1977).


Mossane (1996), de Safi Faye. Senegal

6. Mossane (1996), Safi Faye - Senegal

Ainda em Senegal, encontramos uma pérola da filmografia do país. Situada mais especificamente no povoado de Mbissel, conhecemos Mossane, jovem prometida, desde criança, a um homem que vive fora do país, mas vive um caso de amor, às escondidas, com um aldeano que a leva a se rebelar contra a cultura secular de sua aldeia. Faye, aqui, conduz o espectador a um mundo completamente novo e fabulatório de elementos culturais dos Sererê, etnia que pertence à protagonista. A cineasta, portanto, coloca sua protagonista em um complexo caminho narrativo apegado ao seu elo cultural familiar, mas ao mesmo tempo de liberação feminina em prol de seu sentimento.  É lindo, interessante e ao mesmo tempo doloroso observar o caminho da jovem senegalesa.


Grigris(2013), de Mahamat Salen Haroun. Chade

5. Grigris (2013), Mahamat Salen Haroun - Chade

A luta de Grigris por sobrevivência está incendiada em uma pista de dança. Um homem que vive para dançar, que mais parece ter sido construído para o baile. Claro que as cenas de dança e as comentadas paleta de cores realmente são incríveis, mas o que pouca gente observa nesse filme, ou até torce um pouco o nariz a respeito, é a sua narrativa.

De fato, em alguns momentos há um perigoso flerte com soluções previsíveis. Entretanto, a história desse personagem diz muito sobre o homem negro. O negro sempre precisa ser mais para sobressair, o prazer parece não pertencer às suas possibilidades, tudo que se faz é uma razão para seguir sobrevivendo. Essa emergência é o que move Grigris, acontecimentos surgem em sua vida que lhe impedem de apenas seguir dançando, e é interessante, ao mesmo tempo excitante, seguir esta jornada.


4. Mortu Nega (1988), Flora Gomes - Guiné-Bissau

Mortu Nega (1988), de Flora Gomes. Guiné- Bissau

Esse filme tem um olhar único sobre o espaço, as pessoas e suas relações. Não há entregas baratas. Primeiro filme da linda carreira de Gomes, e primeiro filme da história de Guiné-Bissau.

Talvez o que mais chame a atenção aqui, além da famosa cena final, é que, apesar deste ser centrado historicamente na Guerra de Independência do país, os caminhos narrativos estão muito preocupados com o que há depois desse evento, especialmente na maneira como sua protagonista vai reconstruir a vida ao lado de seu marido depois dos anos de chumbo.


Ar Condicionado (2020), de Fradique. Angola

3. Ar Condicionado (2020), Fradique - Angola

O caçula da lista foi um dos sucessos de público e crítica no We Are One, festival organizado para ajudar economicamente a Organização Mundial da Saúde. Fradique utiliza a ficção científica para reinventar as possibilidades narrativas de uma Luanda extensivamente dominada pelas relações coloniais. A partir de uma interessante alegoria criada na relação entre ar condicionado e concentração de renda, Fradique vai jogar em um campo temático bastante conhecido do cinema brasileiro contemporâneo: o prazer não pode ser um privilégio.


La Nuit de la Verité(2004), de Fanta Regina Nacro, Burkina Faso

2. A Noite da Verdade (La Nuit de la Verité, 2004), Fanta Regina Nacro - Burkina Faso

Fanta Régina Nacro propõe aqui mais um interessante filme que aborda o pós-guerra. Vemos o convite de uma comunidade revolucionária ao presidente para um jantar. Antes inimigos, agora os dois lados do embate propõem uma noite de celebração da paz. O que se vê é que a paz pode ter sido instaurada politicamente, mas os sentimentos humanos seguem em conflito e essencialmente em desacordo. A partir dessa premissa, Nacro leva as tensões entre os dois lados a níveis que extrapolam os limites da aceitação da verdade. 


La Nuit de la Verité(2004), de Fanta Regina Nacro, Burkina Faso

1. A Viagem da Hiena (Touki Bouki, 1973), Djibril Diop Mambéty - Senegal

Particularmente, o diretor senegalês que mais enche os meus olhos é o Mambéty. Gosto de entrar nos mundos narrativos que ele propõe. Além do domínio deste quesito, observo um humor irônico, registrado, por exemplo, na cena já clássica de seu protagonista nu em um carro conversível.

A virtuose do diretor senegalês não passa desapercebida dos cinéfilos. Mesmo aqueles que não estão tão familiarizados com o cinema africano conhecem esse filme. Possivelmente uma das obras cinematográficas africanas mais vistas, comentadas e conhecidas. É de fato uma grande obra que precisa ser mais debatida. Dona de uma vitalidade única por conta de planos viscerais vestidos por uma câmera quase espiritual, um desenho de som altamente moderno e atuações memoráveis.


Extras:

 Sambizanga, 1972, de Sarah Maldoror, Angola

- Sambizanga (1972), Sarah Maldoror - Angola

Muito comentado, inclusive por mim mesmo neste site, após o falecimento de Maldoror, Sambizanga é um filme de muitas camadas interpetativas, todas elas plasticamente agrupadas em umas das montagens simbólicas mais lindas que tive a oportunidade de conhecer.


O Testamento, 1988, de John Akomfrah, Gana

- O Testamento (Testament, 1988), John Akomfrah - Gana

Talvez esse seja o filme mais diferente da lista. Dono de uma capacidade reflexiva e meditativa única. Combina espiritualidade com discurso político fazendo da imagem poesia.

John Akomfrah é um dos fundadores do Black Audio Film Collective, um dos coletivos audiovisuais mais importantes da história do Reino Unido, artista multifacetado, e dono de uma filmografia imperdível. 

       Parte do Especial Cinemas Negros 

Comentários (2)

Guilherme Rodrigues | quinta-feira, 25 de Junho de 2020 - 01:55

A filmografia toda do Flora Gomes é sensacional, destaque pra "Po di Sangui".
Tive a oportunidade uma vez na faculdade de escolher qualquer filme africano para análise, escolhi justamente Touki Bouki sem saber muito bem quem era o diretor e do que tratava o filme. E que filme.

Igor Guimarães Vasconcellos | quinta-feira, 25 de Junho de 2020 - 05:20

Essa lista tem um pouco essa intenção, Guilherme. Despertar o público para os filmes africanos. Pra mim também foi uma experiência similar a esse que vc conta. Meio que sem esperar muito, vc se depara com um filme brilhante.

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