O mal é elemento presente no dia-a-dia, é estudo da psiquiatria, é o antônimo do bem, é o catalisador da violência, do horror e do totalitarismo. O mal é inato ao ser humano? O mal já nasce com cada um de nós? Ou o mal é desenvolvido aos poucos? Michael Haneke (de Caché) tem a sua teoria: o mal surge do ambiente, da convivência, da violência. E o mal que gerou o nazismo teria surgido em uma aldeia da década de 1910, na Alemanha, em seu novo filme, A Fita Branca.
Narrado pelo professor da aldeia, o filme conta a história dessa vila no interior da Alemanha de meados de 1910. O lugar bucólico é como qualquer cidadela interiorana que se conheça: tem uma fonte de renda principal (o Barão, que emprega boa parte da população), um professor, um pastor protestante, muitas crianças e uma paz inenarrável. Essa paz, no entanto, é abalada por uma série de acontecimentos bizarros e violentos que vão se enfileirando ao longo do tempo: o médico da cidade é derrubado de seu cavalo e tem o braço quebrado; um celeiro é incendiado; duas crianças são espancadas e torturadas. Os fatos sucedem-se sem qualquer explicação plausível. O professor da cidade, no entanto, começa a investigar esses crimes e supõe algo inimaginável.
Haneke produz aqui um filme extremamente amargo e cruel. Muito embora a trama siga uma linearidade, diversas cenas são mostradas sem uma cadência, tendo seu início ou fim adiantado ou cortado abruptamente, para ser mostrado na sequência. Tudo isso está a serviço da teoria do diretor: a de que o mal é construído aos poucos.
A começar pela composição dos personagens: todos os adultos são mostrados como figuras opressoras, que impõem respeito ou ordem através da repressão física e moral (a exemplo do pastor, que rege sua casa com mão de ferro). Já as crianças são agentes passivos da dor e da ignorância. Sofrem calados com todo o horror a que são submetidos e conforme crescem, maturam em si a maldade que lhes foi imposta.
Esse sistema construído por Haneke desvela fantasticamente como a maldade se forma e com ela, as ideologias totalitárias como o nazismo e o fascismo. O adulto seria o Estado, sabedor da ordem e da moral, que, de modo tirânico, domina seus cidadãos (as crianças) usando da força extrema, a qual por eles é assimilada e reproduzida depois. Assim trabalhou o nazismo por um bom tempo. Esses jovens da década de dez seriam, vinte anos depois, os hitleristas que viriam a reprimir meia Europa. Ainda trabalhando por esse sistema metafórico, podemos dizer que as crianças são a própria Alemanha, reprimida à força pelos demais países do continente, especialmente na Primeira Guerra Mundial (que vem a explodir pouco depois do término da história). Esses jovens nutriam um sentimento de minoridade e assim desenvolveram o nacionalismo exacerbado que viria a criar o Nacional-Socialismo de Hitler.
Tanto quanto o mal ideológico, surge o mal em sua plena acepção da palavra. O mal que agride, o mal que violenta, o mal que tortura. Quem conhece sociologia e psicologia sabe que pessoas submetidas à traumas físicos e mentais na infância têm 90% de chances de se tornar pessoas violentas quando adultas. É assim que surgem os monstros, os assassinos. Exemplo: o filho mais velho do pastor, que é reprimido duramente por praticar onanismo. Ele tem suas mãos amarradas à cama durante a noite e ainda sofre agressões morais consideráveis. Quais as chances dele virar um pedófilo, um estuprador, quando crescer? São muito grandes. E o que dizer da menina que é abusada pelo pai? Tem chance de ser uma mãe agressora e negligente.
Por tudo isso, A Fita Branca é um filme muito difícil de se ver. É cruel, é subversivo em alguns momentos e acima de tudo, é extremo. As crianças são submetidas a violências difíceis de serem assimiladas. E tudo é mostrado sem qualquer pudor (não que se exija pudor), o que acaba chocando os mais sensíveis.
Mas o filme também é lindíssimo. O preto-e-branco aplicado digitalmente torna este um trabalho incrível de se ver. O processo foi realizado de maneira singular: Haneke filmou tudo em cores e depois, passou para preto-e-branco. O resultado é exuberante. Os cenários são belíssimos, os figurinos, bem realizados. Outro destaque é a câmera de Haneke, que usa de ângulos não convencionais e assim, extrai muito mais emoção e dor dos seus personagens. Todas as atuações são acima da média, especialmente as crianças.
Por fim, um fator interessante a se sublinhar é a inocência. Ela é mostrada do ângulo natural e do ângulo falso. No natural, ela fica explícita na reação do professor, que é observador de todos os acontecimentos de sua aldeia e aos poucos, desvenda a verdade. E sua condição de inocência, de pureza, fica ainda mais forte na relação singela com Eva, a babá dos filhos do barão. Já na inocência falsa, ela é manifestada pela fita branca do título. O pastor amarra no braço dos seus filhos essa fita, para lembrá-los da inocência. E qual seria essa inocência? Uma moral de paisagem, apenas. Uma máscara por onde se esconde o monstro. Afinal, quem é o Estado repressor para exigir inocência, remissão dos pecados e moral, se ele não o pratica? Por tudo isso, surgiu o nazismo, surgiu o fascismo. E a maldade, que continua a habitar nossas vidas e nosso cotidiano. A Fita Branca mostra como a maldade é produzida e como ela se manifesta. Cabe a cada um de nós fazer com que ela fique sempre inerte.
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