Muito além do que se espera de um filme com o tema central sendo a tentativa de provar uma suspeita, Dúvida consegue se esquivar de diálogos densos de ponto e contraponto, trazendo, ao invés, diálogos indiretos com seus significados implícitos, graças a capacidade do diretor/roteirista John Patrick Shanley de não desperdiçar nenhuma cena.
Por exemplo, quando o padre fala a seus alunos sobre como deixa suas unhas, não se trata de uma cena aleatória, mas de algo que posteriormente desempenha seu papel na animosidade entre os personagens de Hoffman e Streep: enquanto o padre se preocupa em manter unhas limpas e longas, a freira as corta. Além de mostrar um personagem vaidoso, preocupado com a aparência - questão fundamental ao se tratar de um padre sob suspeita de pedofilia; também demonstra uma menor rigidez desse personagem.
Também é notável como em cenas chave, o filme apresenta metáforas visuais bélissimas. A freira confronta o padre "E qual garoto vai interpretar o boneco de neve?" e abruptamente abre a cortina, então a forte luz do sol ilumina Philip Seymour Hoffman- é a luz inquisidora da Sra. Aloysius, durante uma incrível cena que progride desde 'quais serão as cantigas da missa' até o inevitável 'o que aconteceu entre o padre e o garoto'. Ou ainda: finalmente a diretora se encontra com a mãe da suposta vítima do padre, temos uma simples conversa que progride maravilhosamente à 'é a natureza do garoto, só tem que durar até junho', ao final da cena um vento arrasta folhas acompanhando os passos da mãe, ao mesmo tempo esse vento se opõe como uma tempestade contra a diretora: é a aceitação de uma e a luta da outra, incapaz de provar a culpa de seu alvo de suspeita.
'Dúvida' não se trata de um filme apenas sobre pedofilia, mas um filme sobre poder e impotência. Temos um garoto atormentado e confuso, este sofre nas mãos de um pai agressivo; temos uma mãe desejando o melhor para seu filho incapaz de enfrentar o marido ou o padre; temos uma freira diretora: pondo medo nos jovens, mas incapaz de tomar uma atitude direta de denunciar um padre, por estar abaixo do clero masculino na cadeia de comando; há um jovem rebelde que evita a escola, talvez por estar sujeito ao mesmo padre; e, por fim, há uma jovem freira tentando buscar sentido em tudo isso em meio a sua ingenuidade, respondendo tanto ao padre quanto à diretora. Assim se constrói uma grande teia hierárquica atuando nas escolhas dos personagens ao longo do filme.
O filme merece créditos ao apresentar a igreja para os homens e para as mulheres como dois mundos completamente diferentes. Em parte por conta da rigidez da diretora e brandura do padre; em parte graças a um sistema que praticamente desconsidera o trabalho da mulher, louvando o do homem sacerdotal.
Vamos aos finalmentes. E no final? O filme se propôs a deixar o espectador na dúvida entre a palavra convicta de uma freira rígida e a defesa de um padre tolerante? Não. Por mais que muitos vejam dessa forma, não acredito se tratar de um Dom Casmurro, onde a subjetividade da obra tenta convencer o público de sua tese. Explico-me: ao longo do filme existem algumas cenas com William, o garoto problemático, cujo papel secundário não está nada à toa, pois é justo uma cena (que nunca vimos, mas sabemos que aconteceu) entre ele e o padre que convence a diretora. Ora, a mulher esta cheia de outras possíveis evidências- desvios de perguntas por parte do padre, reuniões particulares entre ele e o garoto, até abraços no corredor, mas a que convence não é nem interpretada pela suposta vítima nº1; imagino que a cena jamais vista deve ter sido bem insinuante. Mas se parasse aí meu argumento, estaria sucumbindo à intuição da freira. Portanto, o que definitivamente comprova, além da resignação do padre perante a possibilidade de ter o passado investigado; é o sorriso de William, um leve e sutil sorriso quando o personagem de Hoffman se despede da igreja. O garoto recebia castigos da diretora, vivia contra as regras, e quando a pessoa mais tolerante da igreja vai embora... ele sorri.
Agora ao último 'finalmente'. É lindo ver a ressignificação do título na última cena. Ao longo da trama a diretora diz que para agir contra o que há de errado, a pessoa deve se afastar de Deus. Quando vemos a resistente freira certa-de-sua-opiniao cair em prantos e dizer que tem dúvidas, aí entendemos. Toda a certeza da mulher é fundada em sua observação e experiência. Trata-se de uma personagem que passou por situações ruins, uma personagem cuja experiencia a tornou fria e dura. Então ela não tem dúvida da culpa do padre cuja pena será uma promoção a um cargo de mais poder. Ela tem dúvidas. E chora, compondo uma espécie de Pietá em meio a neve.
Filme lindo e sensível,Shanley atingiu a perfeição várias vezes nesta obra.
Q crítica sensacional!
Valeu! ;)