Uma Viagem aos Dilemas Humanos
Por Aflaudisio Dantas
Apocalypse Now é aclamado como o maior filme sobre a Guerra do Vietnã. Outros o chamam de o maior filme antiguerra já feito. Ele pode ser merecedor dessas duas alcunhas, mas, acima de tudo o filme é uma estupenda viagem ao coração e à mente humana. Diante de suas imagens fortes, discrepantes e chocantes, nos vemos como crianças diante de nossos medos. Creio que Francis Ford Coppola deve se olhar maravilhado dentro de seu íntimo soltando suspiros de satisfação por ter concebido essa obra.
A trama ocorre no Vietnã em meio à famigerada guerra de mesmo nome. Um homem de lembranças destruídas pela guerra e pela sua incapacidade de se relacionar com quem amava busca preencher o vazio existente em sua “alma” com uma última missão. Algo bem corriqueiro no ser humano. Preferimos mascarar nossos problemas com trabalho, vícios e outras coisas em vez de buscar uma solução definitiva. Enquanto espera sua missão para voltar à selva e consequentemente tentar buscar alívio imediato para a sua aflição, o capitão Willard (Martin Sheen) apenas delira. Fita o teto em direção ao ventilador e vê mais que um ventilador. Vê a hélice de um helicóptero e enxerga nele o catalisador de tudo que sente. Sonhando com seu passado desejando que fosse seu futuro.
Quando finalmente consegue sua missão parte com um misto de resignação e euforia. Sai em busca de um desconhecido coronel Kurtz (Marlon Brando), que precisa assassinar sob o pretexto de que o mesmo havia enlouquecido e adotado métodos “fora dos padrões” de guerra norte-americanos. Aos poucos vai percebendo o quanto a verdade pode ter várias facetas, e quão susceptível ao imponderável pode ser o Homem. Na verdade, já idolatrava mesmo que timidamente aquilo que tinha recebido ordens para destruir. É como o homem que ama alguém, mas não consegue lidar com seu amor e acaba transformando-o em ódio. Um verdadeiro iconoclasta.
Durante a travessia que devia acabar no Camboja, Coppolla nos brinda com uma brilhante ilustração do que foi a Guerra do Vietnã. Nessa viagem, vemos mais que corpos mutilados, cadáveres carbonizados ou perfurados por balas. Coppola resolveu ir além. Deixando de lado todo o molde de filme de guerra hollywoodiano que poderia usar, ele investiu pesado no psicológico dos personagens. A viagem é, na verdade, um passeio na mente daqueles seres saturados pela guerra. Em vez de mostrar a pompa dos generais e a glória dos soldados, o diretor prefere mostrar as fraquezas de todos.
Isso pode ser visto claramente no Coronel Kilgore, que, para esquecer o inferno em que vive, volta todos os seus momentos de diversão para o surf. Ou o soldado que antes de ir para a guerra era um chef e morre de medo de tigres. O que Coppola busca é mostrar que antes de serem americanos ou vietcongues, os soldados são seres humanos dotados de fraquezas e desejos. E que homem nenhum foi talhado para a guerra. A dúvida se a guerra é ou não legítima está personificada no dilema do capitão Willard. Esse não sabe se deve realmente cumprir a sua missão, pois quanto mais lê o dossiê preparado pelos seus superiores mais tende a achar que o louco coronel pode ser na verdade mais lúcido do que qualquer um ali.
E só mesmo com muito lirismo, sensibilidade e poesia é que Coppola conseguiria montar um painel psicoemocional tão rico sem recorrer a clichês ou pieguismos. A cena inicial é de uma intertextualização impressionante. A destruição mostrada no início como se fosse uma lembrança do capitão Willard com a música The End, do The Doors, ao fundo traduz sem precisar de uma fala sequer o que seria o filme. Mostra também os fantasmas íntimos de seu protagonista, que na verdade são os mesmos de todos os soldados. A cena do ataque a aldeia é poesia pura. Os helicópteros que simplesmente dançam no ar ao som instigante, sombrio e transcendental de A Cavalgada das Valquírias (Walkürenritt), de Wagner, bombardeiam o vilarejo como se fossem pássaros desovando seus filhotes num ninho seguro.
Não se trata de mais um filme sobre a Guerra do Vietnã, é um registro dos dramas e preocupações daqueles que viveram a guerra intensamente e nem sempre por vontade própria; daqueles que se viram diante de um inimigo que sequer sabiam o porquê de serem inimigos. É um reclame do homem amedrontado em busca de paz em meio à guerra, em busca de respostas, mas sempre encontrando mais perguntas. Enfim, Apocalypse Now fala sobre mim, sobre você. Fala sobre a humanidade.
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