Godard completa 80 anos com uma contribuição de cinco décadas para o cinema.
Jean-Luc Godard disse certa vez que filmava para escrever e escrevia para filmar; enquanto foi crítico se considerava um cineasta, e quando começou a fazer filmes fez questão de permanecer crítico. Parisiense, estudou na Suíça e na Sorbonne. Aos vinte anos, fundou com Jacques Rivette e Eric Rohmer a Gazette du Cinèma, mais tarde colaborando na Cahiers du Cinèma e outras revistas especializadas. Um dos criadores da Nouvelle Vague e da política de autores, para Godard era urgente vincular pensamento à imagem cinematográfica, de modo a subverter as regras da indústria do cinema e da narrativa clássica.
Viaja para conhecer os Estados Unidos e retorna a Suíça, onde se emprega como operário na construção da represa da Grande-Dixence, e finda a experiência, trabalha na produção de seus primeiros curtas, o documentário Operation Béton (idem, 1954), sobre a construção daquela represa e voluntariamente convencional (filmado com as economias de seu próprio salário), e em seguida, Une Femme Coquette (idem, 1955), mais pessoal e influenciado por Roberto Rossellini e Otto Preminger, mas ainda de resultados desiguais. Volta para os Cahiers, e mais experiente, roda os seus melhores curtas: Tous les garçons s’apellent Patrick (idem, 1957), Charlotte e Seu Namorado (Charlotte e son lules, 1958), e, pouco depois, Une Histoire D'eau (idem, 1958), em co-direção com François Truffaut.
Os Incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, 1959) e Hiroshima, Mon Amour (idem, 1959) vieram antes, detonando o que seria o surgimento da Nouvelle Vague, com os críticos-realizadores passando da teoria à prática, mas a grande ruptura estética do movimento seria com o primeiro longa-metragem de Godard, Acossado (À bout de souffle, 1960), onde toda a linguagem, todos os elementos fílmicos foram desconstruidos. Rodado em quatro semanas, com a câmera na mão e um enredo solto bebendo dos filmes policiais americanos, Acossado é um manifesto improvisado sobre a desordem de nosso tempo, como viriam a ser quase todos os filmes posteriores do diretor. Uma cartilha de suas intenções cinematográficas, Godard com o anarquismo de Acossado fez o cinema francês redescobrir a política, o que se seguiria com as críticas à guerra de O Pequeno Soldado (Le Petit Soldat, 1960) e Tempo de Guerra (Les Carabiniers, 1963). Entre os dois, lançou a sua mulher Anna Karina como grande estrela em Uma Mulher é Uma Mulher (Une femme est une femme, 1961) e Viver a Vida (Vivre sa Vie: Film en Douze Tableaux, 1962). Um é o máximo de alegria, o outro o máximo de tristeza. O primeiro com uma nostálgica referência aos musicais da Metro, mas menos um musical do que a vontade da personagem em viver dentro de um; e o segundo de uma beleza hibernal que contrasta com a exuberância de seus primeiros filmes coloridos, o primeiro de muitos que viriam em seguida a tratar de forma mais direta da crítica posição da mulher na sociedade moderna, da prostituição (no sentido literal ou figurado) como uma metáfora para a vida no capitalismo, onde tudo e todos podem se reduzir a uma mercadoria, processo no qual o ser humano se torna alienado de si mesmo, uma coisa qualquer pronta para ser comprada ou vendida, vítima de uma sociedade de consumo e da estimulação artificial do desejo por bens materiais, que produzem a necessidade por mais dinheiro e lucro, acentuando o isolamento dos personagens ou apresentando outros como glamourosos e vazios.
Cada um de seus filmes geralmente parte de uma série de episódios aparentemente desconexos, estruturados numa montagem não-convencional (e inovadora). Nessa procura constante de inovações formais e ousadas, minimizou o enredo em detrimento da análise (beirando por vezes o filme-ensaio), com muitas citações da alta e da baixa cultura, quebrando o tempo convencional de uma seqüência, através de cortes bruscos, com repetidas mudanças de lugar e enquadramento, e misturando o tempo real com o tempo psicológico. A partir de 1963, a sua filmografia se intensifica, adquirindo um ritmo febril e realizando dois ou três filmes por ano. O Desprezo (Le Mepris, 1963) é tanto sobre a dissolução de uma relação amorosa quanto um filme sobre o cinema (o maior nesse sentido), e representa o seu auge estético, juntamente com O Demônio das Onze Horas (Pierrot le Fou, 1965), o grande filme sobre a liberdade e a impossibilidade dessa liberdade, onde chamou um de seus heróis, Samuel Fuller, para definir o que é cinema. Godard brinca com gêneros (como fizera com o musical em Uma Mulher é uma Mulher) e emprega o noir e a ficção-cientifica como molduras em Alphaville (idem, 1965), onde o individuo é encarado como parte de uma ilusão em uma sociedade que o manipula. Godard prossegue a década de sessenta como o que melhor sintetiza as transformações do cinema e sua linguagem, discutindo-o sob diversos ângulos: a juventude, o sexo, a liberdade, a política, a classe média, o operariado, a guerra, etc. É constante em seus filmes a vida dentro da sociedade impedindo a liberdade plena, daí a grande força de resistência que assume sua obra. Em A Chinesa (La Chinoise, 1967) Godard filma jovens em processo de encontrar seu lugar no mundo, na ânsia e impossibilidade ou não de concretizar seus ideais revolucionários, e em Weekend à Francesa (Week End, 1967) o capitalismo entra em colapso, um casal decide viajar de carro, mas nunca conseguirão chegar até o destino almejado, tornando o filme um road-movie apocalíptico. Os personagens possuem a vastidão da estrada à disposição, mas não saem do lugar, pois estão presos a uma realidade da qual não conseguem escapar. O próprio cinema de Godard atingiria um ponto limítrofe com Weekend e também entraria em colapso, ainda mais com os movimentos estudantis de Maio de 68 (aliás, Godard foi às ruas na época), rompendo com o circuito comercial e o cinema de ficção, dedicando-se a um cinema de militância política, criando o Grupo Dziga-Vertov e trabalhando em estreita colaboração com Jean-Pierre Gorin.
Fazer politicamente os filmes políticos, diziam Godard e Gorin. O grupo de cinema revolucionário foi à Tchecoslováquia, em Pravda (idem,1969), à Inglaterra, em British Sounds (idem, 1970), aos Estados Unidos, à Itália (ainda que Lotte in Italia [idem, 1971] tenha sido filmado todo na França)e também à Palestina, para tentar entender o que era o processo revolucionário, seguindo um caminho ainda mais radical que aquele que Godard havia trilhado até então, com filmes engajados que, além de expor situações concretas a partir de leituras de teoria política, interferissem na realidade e fomentassem consciências. Na prática, porém, nada interferiram na sociedade, pois nenhum dos filmes da dupla chegaria a um público relativamente maior ─ com exceção de Tudo Vai Bem (Tout Va Bien, 1972), realizado depois do fim do grupo, mas ainda com o seu espírito, onde contrata-se uma vedete (Jane Fonda), arruma-se para ela um par romântico (Yves Montand), cria-se uma história de amor entre os dois, mas o resultado final é sempre fiel às intenções da dupla de realizadores, que escancaram posições ideológicas, mas se sobressaem por curiosas experiências com som e imagem, que conservam momentos de frescor, estabelecendo certa dissonância de sentidos. Pouco depois, rompe com Gorin e inicia uma parceria com Anne-Marie Miéville a partir de Número Dois (Numéro deux, 1975), para muitos um recomeço em sua carreira. Godard e Miéville fariam ainda Aqui e Lá (Ici et Ailleurs, 1976), que aproveita material filmado pelo Grupo Dziga Vertov na Palestina em 1970 e discute sobre o sistema de imagens e a revolução, ou em como a revolução se apropria das imagens, ou como elas são usadas na revolução; o documentário Comment ça va? (idem, 1978), além de alguns trabalhos para a TV francesa.
Depois de quase dez anos fora do circuito comercial, Godard retorna com Salve-se Quem Puder (A Vida) (Sauve qui peut (la vie), 1980), que o reaproxima de um público que o admira ou o detesta. Não é tão difícil amar os filmes do cineasta da década de sessenta; longe de ser fácil é gostar de toda a sua obra posterior. Godard tem fama de diretor difícil, o que não está longe da verdade, o que ocorre mais por conta da relação do diretor com o grande público. Seus filmes pedem ao espectador que ele se envolva com o material, mas, tão logo aceitamos o jogo, não há nada de tão complicado, austero ou distante nele. O que há é a busca de linguagens inéditas, a fuga dos elementos mais óbvios, a recusa por qualquer tipo de fetichismo e a imbricação do cinema com outras formas de artes e proliferação difusa de signos e citações das mais diversas, um cinema determinado não em convencer, mas em discutir. Compreendendo-se que não há tanto intelectualismo quanto se acredita haver nessas obras, elas poderão se converter em experiências emocionais concretas ou então se reduzirem a pouco mais que nada a uma platéia que ao buscar aquilo que não há em Godard, perde de experimentar aquilo que existe em seus filmes. Geralmente se guia por anotações escritas a mão, não por um roteiro, e sopra o texto aos atores na hora de filmar. ''Não tente entender. Apenas sinta'', disse para Isabelle Huppert quando a atriz pediu explicações sobre a sua personagem em Paixão (Passion, 1982). Aliás, como não experienciar Paixão e Carmen de Godard (Prénom Carmen, 1983) senão como intensas experiências sensoriais e lúdicas? A imprensa mundial, entretanto, preferiu relegar o cineasta francês na década de oitenta ao escândalo religioso de Je vous salue, Marie (idem, 1985), filme com insinuações sobre Nossa Senhora e considerado herege pela Igreja Católica. Sua maior obra, entretanto, ainda estava por vir: História(s) do Cinema (Histoire(s) du cinéma, 1988-1998), em que ao findar o século do cinema, o diretor francês se dedica a sua série de historia(s) em oito episódios durante dez anos, retirando todo o peso didático que documentários do tipo carregam, deixando que as imagens falem por si só. E há uma orgia desvairada delas do começo ao fim, uma incessante colagem de fotogramas e sons, formadas por fragmentos da própria história do cinema, além de pinturas, fotografias, intertítulos, etc, num resultado esteticamente vertiginoso. O procedimento se alastra para todo o seu trabalho posterior, inclusive em seus filmes de ficção gradativamente adotando um emprego, uma função propriamente histórica, não de explicação, mas de comentário sobre a História.
Daí em diante a carreira do diretor francês se divide entre produções maiores e vídeos e comissões pequenas. Nouvelle Vague (idem, 1990) expressa a falta de rumo da ficção dentro de sua obra e em Allemagne 90 neuf zéro (idem, 1991) a idéia de solidão de um povo ou de uma nação. Percebe-se também um certo enfado em Infelizmente para Mim (Hélas pour moi, 1993) e faz seu auto-retrato: Auto-retrato de Dezembro (JLG/JLG - autoportrait de décembre, 1994). Seus últimos longas sempre estrearam nas telas do circuito brasileiro (Elogio ao Amor [Éloge de L'amour, 2001], Nossa Música [Notre musique, 2004] e agora Film Socialisme [idem, 2010]), geralmente como uma presença incômoda a desafiar o público, o nosso olhar, questionando a nossa percepção de mundo e do cinema, e por vezes frustrando a nossa expectativa do que deva ser um filme, mas nunca a beira de esgotar o seu interesse ou perto de mostrar uma fórmula cansada. Pode-se não gostar de todos os seus filmes, pode-se até lhe virar as costas, mas Godard chega aos oitenta anos de existência (e nos cinqüenta que separa Acossado de Film Socialisme) ainda por cima, firme e quase sem rival na condição de maior realizador vivo.