Começava aqui, oficialmente, a guerra entre o diretor que despontou como o queridinho de Hollywood no final da década de 1990 e a crítica especializada, que já questionava sua qualidade como contador de histórias e passava a ver seus traços de autor como uma síndrome, armadilhas que ele montava para si mesmo e que fizeram de A Vila um filme que cambaleia por um cabo, segurado de um lado pelos detratores do cinema de M. Night Shyamalan e, de outro, por seus entusiastas, parcela que vinha a enxergar não só nesse como também nos seus esforços posteriores, o talento agora questionado daquele que deve ser o cineasta mais polarizou opiniões nos últimos anos.
É curioso, para não dizer engraçado, que esse filme que delineou as trincheiras entre o diretor e os críticos seja aquele em que o nome de Shyamalan, enquanto grande contador de histórias ou o suposto cineasta da enganação e vítima de si mesmo, vem antes do próprio filme; ou seja, o apresso ou não por A Vila vai depender muito do que se tem (e se entende) pelo cinema que o indiano veio construindo desde O Sexto Sentido, talvez até antes com o independente Olhos Abertos, porque é nesse aqui onde os signos dele, características elementares, são postos à prova – embora, ironicamente, ele vá se desfazendo das expectativas ao longo do caminho, de forma arriscada, mas sempre muito consciente.
Se o premiado filme de 1999 estabeleceu marcas como a inserção de pessoas comuns em situações fantásticas, atores sussurrando suas falas, tom solene, uma suposta grande mensagem por trás (aqui, além da mensagem, existe um comentário social, mas que, por mais pertinente que seja, é somente um aspecto, nunca a razão de ser do filme) e a necessidade da inserção do plot twist, que foram vistas em maior ou menor proporção em produções como Corpo Fechado e Sinais, encontram em A Vila uma espécie de impasse, por esse filme representar justamente um intermédio na carreira do diretor, não só em termos comerciais, mas principalmente narrativos. Shyamalan enxerga em A Vila a oportunidade de mexer com as expectativas do público e da crítica, rever seu estilo, contar e recontar e se refazer enquanto autor.
Não deixa de ser precoce e altamente arriscado um filme-revisão vindo de um diretor que estava começando a andar com as próprias pernas em Hollywood e firmando-se autor, embora, mais do que uma autoavaliação da própria obra, A Vila surgiu de uma clara vontade de estabelecer novos caminhos, saindo de cena um Shyamalan mais preocupado em agradar público e crítica e entrando o provocador, que deixa explodir sua veia autoral, pessoal, com efeitos positivos e negativos – como viria a mostrar em alguns de seus trabalhos seguintes. Não se trata de legitimar o que já foi dito em seus três ou quatro filmes anteriores, mas de mostrar que ainda tem mais do que aquilo a oferecer no que se refere aos recursos narrativos; assim, mesmo que as fórmulas de sempre estejam lá, elas acabam sendo burladas, contrariadas e, por que não, reafirmadas, como ao criar a ideia de perigo, desmenti-la logo no meio do filme e reafirmá-la em uma angustiante sequência final.
É, particularmente, o filme que mais explora a capacidade de Shyamalan enquanto narrador, seja pela paixão com a qual conta a história daquela pequena comunidade cercada por uma floresta tomada por monstros onde se há um acordo territorialmente delimitado de convivência, seja por quebrar as expectativas em torno do seu próprio estilo ao brincar com as revelações sem jogá-las exclusivamente para o final e mexer com a própria ideia da surpresa, do impacto que une todas as pontas soltas, mas que aqui funciona apenas como uma das muitas camadas, uma das formas de apreciá-lo – ou detratá-lo, como quiser. Desse filme em diante, por conta da guerra agora selada, veríamos a necessidade de “ser autor” muitas vezes engolir alguns dos filmes seguintes do diretor na feitura do calor da briga e na constante vontade de se provar diante dos estúdios e especialistas que o acolheram anos atrás e que, aos poucos, lhe viraram as costas, mas nunca com o mesmo equilíbrio, a destreza e a autoconsciência que fizeram de A Vila o seu melhor filme.
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