Saltar para o conteúdo

Última Cidade

(Última Cidade, 2020)
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

"Ninguém tem amigo nessa cidade não"

6,5

Sci-fi semi apocalíptico que visa expor as perambulações de uma criatura mediante uma distopia, onde o verdadeiro apocalipse é o sistema impessoal capitalista que o rege. Deambulações por espaços e tempo, pobreza e abandono a rodo. Pelas vistas do protagonista João – o ótimo Júlio Adrião – vemos o perpassar daquele universo duro que monta sua distopia através da perspectiva desse personagem e seu cavalo. Quase como uma espécie de Dom Quixote – que inclusive até encontra o seu Sancho Pança – sem rumos.

A narrativa usa de alguns subterfúgios espertos para manter seu tom melancólico a funcionar e fica prometendo uma chegada na falada cidade. Mantém-se a expectativa do que diabos se vai encontrar nessa última cidade. Inclusive outra esperteza é a narração em off. Havia a necessidade de uma narração? Já que o personagem interage sozinho – com o cavalo – em boa parte da duração inicial, então acaba por ser uma forma de levar a trama a frente e expor o aporte existencial de João.

Outro acerto do filme fora na direção de fotografia - em conjunto com as escolhas de direção aqui. Algumas ótimas seleções de planos enchem os olhos. A cena nas dunas; a andança a cavalo com cores quentes aproximando-se do vermelho com a grande cidade ao fundo em perspectiva; o ótimo posicionamento de câmera e luz num plano envolvendo uma vidraça, com um conflito de personagens latente; entre outros. É um discurso em poesia visual que serve à poética política pela qual o filme inventa de se debruçar. Nisso a fotografia é contumaz comparsa criminosa. Isto se soma a escolha narrativa por uma fita excessivamente lenta, que visa confabular sobre a rotina desse cidadão com alucinações diversas (são mesmo?), que servem a mostrar a dureza daquele universo. Um insolitismo rotineiro.

Ainda na fotografia temos a lisergia da sequência nas dunas, que serve para demonstrar os conflitos pessoais do personagem principal enquanto vaga pelo espaço. Com direito a uma referência ao Paulo Martins de Jardel Filho no Clássico Terra em Transe (Terra em Transe, 1967) do Glauber Rocha, obviamente sem a mesma audácia e força política, mas faz uma proposição à solidão que se encontra João. Há esperteza nas imagens que enriquecem a narrativa (mesmo que esta não chegue em tantos lugares quanto se quer fazer parecer). Cito um questionamento aqui, não como uma referência, mas como uma jocosidade minha, aponto o péssimo uso da trilha sonora aqui. Um uso absurdamente cafona (numa acepção não lisonjeira) dos temas para com o perpassar da fita. Exagerando demais no drama, assim fugindo do tom estabelecido pela sóbria fotografia – que se encaixa no tom certo de alucinação e absurdo real proposto. Os temas inclusive lembram a breguice do filme Cyborg, o Dragão do Futuro (Cyborg, 1989), de Albert Pyun e com Jean Claude Van Damme – fui buscar essa citação –, que tinha em sua trilha uma deliciosa breguice que casava muito bem com a proposta tresloucada em exagero. Em a Última Cidade a conjuntura do material filmado descasa com o uso da trilha, e isso não funciona nem como incômodo, só com mau uso mesmo.

E sobre o que porra serve a Última cidade? Que mitos de oportunidade ela tem a oferecer? Gangue nas ruas. Roubam o cavalo de João (o desespero aqui é joia). Contraste dos personagens e o telão de fogos de artifício em relação aos desesperados em abandono. Sofrimento e desespero na cidade grande. As portas fechadas. A cidade se mostra como uma torturante seara sobre as classes menos abastadas. Que sirva como oportunidades falsas (como a jogatina demonstrada num bar) a serem vendidas a seus personagens. O que em termos de concepção acabam por se manifestar como farsa. O que é ótimo diante das escolhas narrativas até ali.

Nisso entramos na parte documental (ironicamente me atento aqui uma linha de escrita menos hardcore que a do filme, já que sigo tradicionalmente a continuidade dos fatos e relações entre os personagens, então não se descambem pelo meu discurso, o filme é um pouco mais disruptivo do que o meu texto o deixa parecer); e é nessa fase que o filme tem essa tentativa de engate orgânico momentâneo ao encaixar a parte documental citada. Depoimentos e estórias sobre idas às cidades grandes. Uma inserção grosseira até que foge um pouco do escopo narrativo anterior, mas mostra-se acertada demais diante do discurso crítico que o filme enseja. O fato de não ser tão orgânica talvez seja um grande lance do filme – pra mim o é –, já que os depoimentos entram e se manifestam pesadamente e depois os personagens deles somem sem deixar rastros, como figuras etéreas que tem consciência do esquecimento ao qual são atreladas. Como se fossem apensas mais uns lascados dentro dos ditames de uma grande cidade. Joia.

O material acaba por ser irônico em sua reflexão ao seu findar, quando propõe que seu personagem independentemente dos caminhos que tome, sempre será dúbio, e que o sistema capitalista assim o aceita e o estimula. A força do final está nas escolhas dos planos que corroboram com a ambiguidade do personagem pelos usos dos espelhos e pelo próprio discurso do sujeito que ao fim serve mais como ponto crítico do material do que um fim de ciclo daquilo que vemos até então. O conflito é mais etéreo na questão política e por devaneios internos do personagem do que narrativos propriamente ditos. O que não deixa de ser interessante em acompanhar, mesmo que o ritmo seja propositadamente lento, porém quando o mesmo acaba sendo torturante em algumas passagens, funciona.

Material partícipe da 1ª Mostra de Cinema Papo Meia-Noite
Fortaleza-CE

Comentários (0)

Faça login para comentar.