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Críticas

Cineplayers

A fuga da realidade em um delírio musical.

8,0

Sinfonia de Paris, vencedor do Oscar de melhor filme em 1952, é tido como um dos principais representantes de um gênero cafona, oldfashion: o musical espalhafatoso da Velha Hollywood. Gênero que faz muita gente torcer o bico, e que tem lá seus excessos: são longos minutos desprendidos para sequências grandiloqüentes, multicoloridas e por vezes maçantes, mas que quando realmente enquadradas ao filme podem ajudar a sustentar muito bem seu discurso. Caso dos filmes de Vincente Minnelli, grande diretor não muito lembrado pelas novas gerações, como A Roda da Fortuna (The Band Wagon, 1954), com Fred Astaire, e também do pioneiro filme em questão.

Pioneiro pois foi com Sinfonia de Paris que instalou-se de vez em Hollywood uma característica que se tornou figurinha tarimbada de bons e maus musicais de estúdios como MGM e Fox nos anos 50. A gigantesca sequência de dança e canto que encerra o filme, recurso importado do musical inglês Sapatinhos Vermelhos (Red Shoes, 1948), de Powell e Pressburger, surge quase como um corpo à parte na narrativa. Um curta-metragem dentro da história que estava sendo contada, um filme-dentro-do-filme. Um recurso que raramente funcionou tão bem, mesmo em trabalhos mais bem sucedidos como Cantando na Chuva (Singin'  in the Rain, 1950), de Stanley Donen, cuja homenagem a Melodia da Broadway (The Broadway Mellody, 1929) que ocupa mais de 20 minutos, quase põe o filme (que é excelente) abaixo. 

Isso porque o filme de Minnelli está muito distante da perfumaria do gênero, e utiliza-se do recurso de maneira bastante racional, consciente. Mesmo este longo corpo estranho surge e desaparece da tela (literalmente) interligado a um discurso central bem expressado, uma ideia firme de filme que se encontra por detrás da história. O musical trabalhado como um luxuriante delírio, uma válvula de escape para um homem sonhador que vive uma vida medíocre e, para sair dela, se depara com conflitos difíceis, que geralmente não gostamos de enfrentar - como, no caso, um quadrângulo amoroso cheio de relações de dependência, onde o maior desejo, obviamente, é pela parte mais difícil de possuir.

É este o embate pelo qual passa nosso protagonista, vivido pelo carismático ator e bailarino Gene Kelly, na Paris dos anos 50.  Minnelli, diretor com um cuidado especial no retrato de sonhos e desejos, compreende a relevância do cenário e de seu astro e os combina para que tudo convirja nesta seqüência final. É para ela que todos os caminhos do filme seguem, seja na trama ou no desenvolvimento dos fortes conflitos emocionais, já que é a combinação de experiências frustrantes que leva Kelly a desejar escapar da realidade e pedir refúgio em seu imaginário, que surge para dar um basta no negativismo do retrato das relações interpessoais do filme.

A visão do diretor para os relacionamentos, vale ressaltar, está bem distante do que se imagina encontrar num musical oldfashion, basicamente de diversão efêmera e edificante.  Em Sinfonia de Paris, quando se trata de amor, sempre há alguém a perder; quando se trata de sentir, toda ilusão leva a uma desilusão; etc. Paris é cenário para romantismo, mas também é cheia amargura, o que faz lembrar novamente do trágico musical de Powell e Pressburger - uma das sequências derradeiras ocorre em um terraço com a bela vista noturna da “Cidade das Luzes“ ao fundo, num brilhante movimento de câmera panorâmico que ressignifica completamente a imagem sem cortar o plano, e que nos derruba feito um golpe no nariz.

É a partir daí que entra em cena o cinema-delírio de Sinfonia de Paris. Kelly parte para um tour de force de canto e dança perseguindo sua amada por cenários que evocam a beleza magnificente de Paris: cafés, praças, ruas e etc. Um espetáculo de cores e formas luxuriante, fotografado com precisão por Minnelli através do saudoso Technicolor da época, num sonho comandado pela leveza do sapateado de Kelly, e que conclui com um recurso que mais parece saído de um filme de David Lynch. Em um simples estalar, toda imaginação de seu protagonista se esvai e, através de um corte seco, somos novamente arremessados na realidade. Realidade que finalmente chega para corresponder seu sonho. Este foi Vincente Minnelli, ao mesmo tempo um autor amargo e um dos grandes sonhadores do cinema.

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