Filme quase desconhecido de Bergman, dos primeiros anos de sua carreira, mostra traços do que viria a ser o diretor.
Nos três anos que separam Crise (1945), seu primeiro filme, a Porto (Hamnstad, 1948), o cineasta Ingmar Bergman dirigiu 5 filmes e escreveu 9 peças. Era o mestre aprendendo o ofício, quando testou diversas formas narrativas – tentaria a comédia pouco depois. Assim, Porto é uma raridade em sua carreira: trata-se de um filme neo-realista, então em voga na Itália, no estilo do Rosselini de Roma - Cidade Aberta. Seguia o mestre sueco a sensação provocada por Ladrões de Bicicleta, de Vittorio de Sica.
Mostra, com o mesmo senso de documentarismo, a vida dos trabalhadores do porto de uma pequena cidade na Suécia. O filme começa com uma tentativa de suicídio da jovem Berit, que se joga nas geladas águas do mar, sendo salva por um marinheiro. Ela é levada, aos berros de protesto, para um hospital e depois para um reformatório, onde ficará por dois anos, isso depois de ter acabado de sair de uma temporada de um ano em outro reformatório.
Na volta, a vida é um inferno, não só pelo emprego miserável, pela falta de perspectiva na cidade minúscula, mas principalmente por causa da mãe, uma bruaca que vivia a lhe bisbilhotar a vida esperando um pequeno deslize para denunciá-la novamente. As brigas das duas lembram um pouco um dos clássicos do diretor, Sonata de Outono, em que mãe e filha fazem um dos mais duros acertos de conta do cinema.
Aqui não tem a mesma densidade, pois o registro é melodramático. A pobre Berit conhece um marinheiro meio sensível, que gostava de ler. Vê nele a possibilidade de mudar de vida, mas fica a dúvida: vai o marinheiro aceitá-la depois das duas temporadas em casas de reabilitação? Fora que, na tentativa de se casar rápido para se livrar da mãe temerária, Berit andou dando alguns psius a mais aos marinheiros locais – e isso, numa cidade pequena, é fatal. Sem contar a tentativa de suicídio.
Parece mais novela mexicana do que Ingmar Bergman, mas não se deixem enganar: é Bergman. Estão lá os magistrais enquadramentos, ancorados pela câmera de um de seus fotógrafos favoritos, Gunnar Fischer (é dele as esplendorosas luzes de O Sétimo Selo e Morangos Silvestres), o expressionismo na representação (tão caro aos cineastas europeus do pós-guerra), os diálogos furiosos. Nas cenas em que filma o porto, Bergman esconde o rosto dos trabalhadores e acentua o contraste do preto-e-branco, em admiráveis cenas ao mesmo tempo duras pela realidade que mostram, e ternas, pelo carinho com que o diretor tem pelo objeto de sua filmagem.
O filme não tem nada de conservador, é francamente erótico e trata do tema do aborto de uma maneira que para a época foi considerado um acinte. Porto estreou na Inglaterra com X-rated, ficou proibido 10 anos na Suécia e só foi liberado nos EUA em 1963. O texto de apresentação que a Criterion Collection publicou no DVD do filme diz que a cena de sedução dos dois parece a de um filme noir.
Bergman filmou tudo sem pesar a mão, buscando uma certa funcionalidade na estória que havia no neo-realismo italiano, sem os excessos dos italianos. Claro, não está entre seus grandes filmes, mas o quinto de suas 48 obras tem interesse para quem gosta de ver o retrato de um artista quando jovem, e, por isso, idealista, rebelde, cheio de idéias, dando uma banana para as convenções sociais. Bergman é lembrado pela angústia existencial e seus filmes metafísicos, de grandes interpretações, não por essa pequena obra um tanto áspera de ser ver (mas quase todos os filmes do Bergman são). Vale nem que seja para ver essa primeira colaboração de Bergman com Gunnar Fischer – mas o filme é mais do que isso.
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