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Críticas

Cineplayers

Estes homens maravilhosos, seu filme nem tanto e suas máquinas voadoras.

7,0

No manhã do dia 14 de outubro de 1947, no céu da Califórnia, o piloto norte-americano Chuck Yaeger entrou no pequeno Bell XS-1 de nome Glamorous Glennis, com duas costelas quebradas e um objetivo: atingir a velocidade Mach 1 (1225 km/h) e superar a chamada “barreira do som”, feito até então visto como impossível por pilotos e engenheiros da Força Aérea. Determinado e inabalável, Yaeger venceu a dor no lado direito do corpo, alcançou a inédita marca e pousou suavemente o avião na pista, tornando-se não apenas o homem mais rápido de toda a história da humanidade como também o piloto mais admirado dos Estados Unidos.
 
A grande questão é: o que faria um homem como Chuck Yaeger arriscar a sua própria vida e o bem-estar de sua família para atingir uma marca como essa? Por que ele se jogaria rumo ao desconhecido, em direção a um lugar de onde provavelmente jamais sairia vivo? Por que flertar de maneira tão próxima com a morte? Seria por fama? Por fortuna? Pela glória?
 
Para o jornalista e escritor Tom Wolfe, autor do hoje clássico livro Os Eleitos, lançado em 1979, a atitude de Yaeger pode ser explicada de uma única forma: ele possuía a fibra, “a coisa certa” – ou, como diz o título original, “the right stuff”. Trata-se de algo que poucos homens realmente têm ou tiveram. É uma mistura de força, de absurda coragem e até de alguma inconsequência. Uma sensação, um elemento vital que faz com que estes “escolhidos” desafiem constantemente seus próprios limites, buscando sempre ir além, fazendo aquilo que a maioria dos seres humanos jamais seria capaz. É a matéria-prima para feitos incríveis, como a quebra da barreira do som ou a ida do homem ao espaço.
 
Os Eleitos – Onde o Futuro Começa (The Right Stuff, 1983) adaptou aos cinemas a obra de Wolfe tentando captar a essência daquilo que havia no livro. Assim como o autor fizera nas páginas, o roteirista e diretor Phillip Kaufman, em seu filme, buscou transmitir mais do que apenas a história factual de Yaeger e dos sete astronautas do Projeto Mercury; buscou, principalmente, compreender e entregar ao público a ideia de que aqueles homens eram realmente feitos de algo diferente, que havia dentro deles uma grandeza rara de ser encontrada.
 
Nesse sentido, Os Eleitos começa de forma quase irrepreensível. O primeiro ato da obra, que acompanha Chuck Yaeger e a chegada dos futuros astronautas à base, é realizado de forma extremamente eficaz, com Kaufman acertando no tom grandioso e épico ao retratar as conquistas dos pilotos. O cineasta não tem receio de se apoiar na trilha de Bill Conti para passar a emoção daqueles momentos, apostando ainda em cenas construídas com calma, sem muita pressa, buscando realmente capturar em celuloide a relação entre aqueles pilotos e as máquinas. A cena em que Yaeger, a cavalo, circula o avião no qual alcançaria seu feito histórico é belíssima, como se houvesse entre os dois uma conexão quase sobrenatural – a máquina precisa do homem assim como o homem precisa da máquina –, e Sam Shepard compõe com um personagem que exala autoconfiança e bravura mesmo que não precise dizer muitas palavras.
 
Ao mesmo tempo grandiosa, poética e intimista, essa primeira parte do filme se beneficia bastante do número reduzido de personagens a serem retratados, optando por se focar em Chuck Yaeger como representante máximo daquela estirpe. Enquanto isso, Kaufman também não deixa de fora itens tratados com grande importância no livro, como o papel das esposas dos oficiais, que mantêm uma combinação de medo e admiração pelo trabalho que seus maridos fazem todos os dias nos céus. O cineasta também demonstra habilidade nas cenas dos voos: mesmo lançado há trinta anos, Os Eleitos ainda impressiona nesses momentos tanto pela realização técnica quanto por conseguir transmitir o sentimento dos pilotos.
 
No entanto, assim que entram em cena os sete escolhidos para se tornarem os primeiros norte-americanos no espaço, Os Eleitos acaba revelando uma série de problemas. O principal deles talvez seja exatamente o número de personagens: enquanto no primeiro ato o foco em Yaeger facilitava a narrativa, esta segunda parte precisa dar espaço a um grande número de pessoas. A solução encontrada por Kaufman é não trazer todos os astronautas para o holofote, preferindo dar destaque aos personagens de Dennis Quaid, Ed Harris, Scott Glenn e Fred Ward, uma opção que nem sempre se mostra acertada: por mais que o roteiro consiga apresentar alguma personalidade a estes quatro, ainda assim se revela superficial e apressado em outros momentos, até mesmo por ainda ter que encaixar as esposas e o próprio Yaeger na história.

Dessa forma, todo o longo trecho envolvendo o treinamento e os primeiros voos do Projeto Mercury apresenta uma narrativa truncada, rasa e bastante irregular. Mais do que isso, a abordagem de Kaufman no segundo ato por vezes soa até infantil, especialmente em suas tentativas de humor, como no acréscimo dos personagens de Jeff Goldblum e Harry Shearer (que não existiam no livro), dois trapalhões que poderiam facilmente ter saído de uma comédia pastelão sem qualquer compromisso com a seriedade. Algumas cenas, na verdade, parecem constrangedoras, como a reunião com o presidente que marca o início do segundo ato ou o momento da discussão entre os astronautas, no qual Kaufman faz com que todos gritem ao mesmo tempo, um recurso óbvio e, ao menos para as plateias atuais, incrivelmente batido. Mas nenhuma sequência demonstra tanto a ingenuidade e a falta de sutileza de Kaufman do que aquela que traz rapidamente o lançamento dos foguetes soviéticos: com fumaça, tons vermelhos e risadas malignas, o diretor apresenta o engenheiro espacial comunista quase como o diabo, um retrato que surge nada menos que ridículo nos dias de hoje (ainda assim, vale lembrar que tanto na época retratada quanto no ano de estreia do filme a Guerra Fria ainda estava em voga).

Não que o segundo ato de Os Eleitos seja um completo desastre: por mais que o tom seja bobo e caricatural e boa parte dos esforços dramáticos não passem de tentativas rasas, Kaufman consegue evitar com que a história se torne enfadonha, muito graças ao elenco, que faz daqueles personagens figuras a serem admiradas. Além disso, o cineasta se beneficia do apelo natural de sua história, já que se trata de uma época riquíssima na qual foram dados os primeiros passos de uma das maiores conquistas recentes da humanidade. O roteiro, aliás, escrito pelo próprio Kaufman, encontra soluções interessantes para a adaptação, inserindo algumas falas e cenas do livro de forma natural nos diálogos e nas situações (vale lembrar que a obra de Wolfe é um relato essencialmente jornalístico, ainda que flerte com a ficção, criando mais um desafio para a transposição). Não obstante, é fácil perceber que certos momentos de Os Eleitos poderiam receber melhor tratamento: em que consistia cada teste, por exemplo? Por que não deixar claro do que se tratam ao público?

Felizmente, o filme retorna aos trilhos – ou à órbita – a partir do voo de John Glenn. Nesse instante, quando a câmera acompanha a aeronave sobrevoando a Terra ao som de uma música que quase lembra um balé, Kaufman retoma a abordagem épica e grandiosa do primeiro ato, voltando àquela que sempre foi a essência de Os Eleitos: o retrato da fibra, da “coisa certa” daqueles homens extraordinários. Embora Kaufman ainda cometa deslizes – como a visão exacerbada da imprensa ou a vazia metáfora com os aborígenes australianos –, a produção encontra o tom inspirador que funcionou tão bem no início, encerrando de maneira positiva e sendo capaz até mesmo de fazer o espectador se sentir razoavelmente enlevado pelas conquistas vistas em tela.

Longo, com mais de três horas, Os Eleitos ainda carrega ao seu favor o mérito de jamais cansar a plateia, até por realmente possuir história e personagens que justifiquem a extensa duração. Visto hoje, os problemas da obra parecem mais significativos do que à época de seu lançamento, mas, quando Phillip Kaufman acerta na jornada desses homens maravilhosos e suas máquinas voadoras, acerta de verdade. Os Eleitos é um filme que vai alto, ainda que, infelizmente, jamais tão algo quanto foram seus próprios personagens.

Comentários (2)

Shin Chan | quinta-feira, 08 de Agosto de 2013 - 08:41

Silvio pegou este titulo do filme Esses Homens Maravilhosos e Suas Máquinas Voadoras(1965) de Ken Annakin.

Se o filme também fosse indicado a melhor diretor estaria páreo com Laços de Ternura no Oscar.

Francisco Bandeira | segunda-feira, 12 de Agosto de 2013 - 08:41

Philip Kaufman era realmente genial, infelizmente se perdeu depois de A Marca. Mas entregou obras memoráveis como Josey Wales - O Fora da Lei, Os Invasores de Corpos e, meu favorito... A Insustentável Leveza do Ser.

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