8,0
Imaginem o nosso Roberto Santucci, diretor de "clássicos" como De Pernas pro Ar e Até que a Sorte nos Separe, lançando uma biografia da Carmen Miranda produzida como se fosse os filmes dela, do tempo dela. Imaginem que esse filme tenha ganho todos os prêmios do ano e Santucci tenha se reinventado. Imaginem o passo seguinte dele, um retrato político sobre os dias de hoje num apanhado bem geral, que passe entre as brancas nuvens e a vergonha alheia. E por fim, imagine Santucci pegando um recorte da vida de Glauber Rocha, um período de dois anos de sua vida, e transformando em filme.
Imaginou isso tudo? Agora jogue para a França e temos Michel Hazanavicius. O vencedor do Oscar por O Artista cruzou a década passada dirigindo pastelões franceses campeões de bilheteria que mal eram exportados. De repente, num misto de sorte, algum talento e visão de mercado, Hazanavicius pegou seu astro Jean Dujardin e rodou a história de um astro do cinema mudo que não consegue se acostumar com o som e vai perdendo espaço em Hollywood; o mundo ficou aos pés de ambos, ganhando prêmios globo afora. No capítulo seguinte, querendo ser levado a sério e tal e muito denso, Hazanavicius lança The Search, drama sobre refugiados e órfãos na Europa, e vê o absoluto nada acontecer. Agora ele está de volta, ousando retratar ninguém mais ninguém menos que Jean-Luc Godard nas telas, com o rosto disfarçado de Louis Garrell. Tudo para dar errado, né?
Mas acreditem, Hazanavicius acertou de novo e marca um delicioso e inesperado gol. Talvez por não pretender mudar absolutamente nada, nem no cinema e nem na vida de nenhum espectador (exatamente a fórmula empregada em O Artista), o filme centra foco numa passagem nada longa da vida do que talvez seja um dos mais herméticos, endeusados e enigmáticos diretores da história do cinema, mas que talvez tenha sido crucial para o surgimento do Godard como o conhecemos hoje. Pra isso, Hazanavicius insere seu retratado numa atmosfera de muita leveza e charme para tentar observar uma possível quebra em sua personalidade, que pode ter criado um novo Godard por trás de um dos criadores da Nouvelle Vague. Para tal, o momento das filmagens de A Chinesa, seu posterior lançamento, e a observação de mundo do gênio francês em completa mutação são as chaves para detalhar o homem por trás do mito. Para sublinhar a trama, a história de amor que Godard viveu com sua musa, Anne Wiazemsky, falecida recentemente, responsável pelo livro no qual o filme se baseia, e que funciona como base do olhar e da centralidade da narrativa, o que também proporciona esse recorte do diretor: o Godard de Hazanavicius é o Godard não apenas daquele período, mas o Godard de Anne.
Não era fácil a tarefa de Hazanavicius, sendo que o prestígio dele é inversamente proporcional ao do próprio Godard. Mas a saída foi a melhor possível, talvez a única: com foco em apenas uma passagem, o que temos na frente é a constatação temporal de um momento e por esse mesmo lado, de apenas um olhar, o dele. Que humaniza ao mesmo tempo em que aponta lados egocêntricos e rabugentos do mesmo, mas sempre com muita simpatia e bom humor. O filme consegue fugir do viés chapa branca tão comum a qualquer biografia e que é especialmente questionável em se tratando de homenageado vivo, partindo do princípio que aquele Godard de O Formidável é um personagem literalmente, ainda que com um fundo de realidade. Para isso, o mergulho de Louis Garrell é imprescindível, e o resultado impressionante. Tendo em vista que o filho de Phillipe nunca primou por ser um intérprete de vastos recursos, o estudo de personagem que ele obviamente fez e as camadas que sua interpretação consegue alcançar são surpreendentes e elevam o filme para outro nível.
Além desse viés humano (ainda que falho e não necessariamente agradável) que diretor e intérprete conseguem alcançar naquele instantâneo de realidade possível, outro ponto positivo marcado por Hazanavicius é a apropriação sutil de códigos narrativos e marcações de roteiro e estética típicas do próprio Godard naquela fase da sua carreira, condizentes ao próprio A Chinesa inclusive. O filme diverte a plateia porque também o faz internamente, com as pontuais quebras da quarta parede e intercomunicação promovida na narrativa, que dá um caráter respeitoso ao todo e ao mesmo tempo refresca a mise-en-scene em geral, nada que revolucione o cinema, mas da forma despretensiosa que talvez fosse o perfil de Godard nos primórdios. O elenco acaba participando também dessa proposta de um filme reverente e que ao mesmo tempo precisa ser acessível, o que geralmente rende obras híbridas insuportáveis. Pois quis o talento (in)suspeito de Hazanavicius que desse tudo certo, e o filme consegue um equilíbrio raro de se ver. Atenção para a cena da viagem de carro, das melhores realizações da carreira do diretor.
Ainda que o quadro geral seja de acertos, O Formidável é mais do que uma biografia (gênero que geralmente não rende arroubos de relevância), mas um filme de fórmula. Não necessariamente o boy meets girl, mas tendo em mãos a conhecida história que uniu aqueles dois protagonistas e seu desfecho, as cenas seguem um percurso provável e reconhecível, que se não era possível realizar diferente, também não deixa margem para uma apreciação mais abrangente do todo. Ainda que o livro em que se baseou possa ou não ter influenciado nos caminhos da narrativa propriamente dita, ela também o é extremamente cinematográfica para paladares experimentados ou não. Na verdade nada que Hazanavicius propõe é reproduzir um Godard fidedigno ou definitivo, em imagética ou em representação humana. É esse na verdade seu maior e principal acerto, encontrar através do Godard que viveu na memória daquele tempo, daquele amor, daquele momento de transição, o seu Godard.
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