8,0
Usar a acidez como caminho para a melancolia é uma atitude humana bem corriqueira e cada vez mais comum. Como a depressão vem se tornando cada vez mais palpável para muita gente, os gatilhos que levam a ela estão cada vez mais abertos; a melancolia com certeza é uma delas. Agora fazer um filme absorver características de seu personagem, até criador e criatura se fundirem em um só? É fácil construir uma comédia quando já temos um protagonista engraçado, ou um belo romance quando o foco é um casal cheio de química. A melancolia é um estado de espírito muito pouco fácil de explorar, porque suas características não pedem expansão, pelo contrário. Mas a dupla argentina formada pelos cineastas Mariano Cohn e Gaston Duprat tem se especializado em tipos a beira de um precipício particular.
No seu nono longa (alguns são documentários), os rapazes passaram por Veneza e deixaram seu intérprete principal com a Coppa Volpi de melhor ator. O grande Oscar Martinez encarna aqui o vencedor do Nobel de Literatura Daniel Mantovani, que na própria cerimônia de outorga do Nobel tem uma anunciação: ele, que sempre foi um rebelde por escolha, estava recebendo uma honraria que o tirava de um espaço de questionamento e o colocava num lugar de unanimidade. E isso ele não quer e não aceita, ele não quer fazer parte do 'establishment'. E assim importância se esvai... meses depois e ainda prostrado, Daniel resolve fazer algo impensável desde sempre. Voltar a Salas, o lugar que o pariu da Argentina para o mundo e abandonar a Europa que o abriga há 40 anos. E assim começa a saga desse diletante filho pródigo, que não quer muito voltar pro ninho.
Salas se desenha como uma memória ruim que qualquer um de nós quer esquecer, em vão. Um lugarejo parado no tempo, sinônimo de atraso e desesperança para qualquer um, o reflexo de um estado de coisas que representa o conservadorismo latente de um passado que renegamos. O longa de Cohn e Duprat fala disso, nem toda memória é boa e nem toda memória precisa ser rememorada, ou resgatada. Não há mal algum em ter um passado ruim ligado à sua base humana; basta seguir sem olhar pra trás; cada um sabe a melhor forma de exorcizar os próprios demônios. Daniel resolve atacar a melancolia com um choque de passado, e os resultados são gradativamente desastrosos.
Numa escolha temática que o alinha aos seus dois longas que estrearam no Brasil (O Homem ao Lado e Querida, Vou Ali Comprar Cigarros e Já Volto), os diretores procuram observar a já citada acidez como única resposta possível para a melancolia. Eles filmam o vazio, da bela casa espanhola, das ruas de Salas, do hotel onde Daniel se hospeda, do prostíbulo onde vai, das próprias caminhadas, sozinho. Por escolha ou não, o filme filtra a solidão e extrai dela ainda mais desespero. Daniel Mantovani é um homem consagrado e só; quem se aproxima dele está igualmente só, mas veste outra armadura. O filme tenta soprar as feridas dos pobres diabos mostrados ali, mas eles mesmos infectam e refazem estragos que ninguém parece querer curar. E a solidão permanece, até nos quadros feios de um concurso de artes plásticas, em debates onde o silêncio predomina, e mesmo literalmente a ausência de som é sentida, ao percebermos que um personagem não falará em cena, o mesmo que imitará por duas vezes o grito de um porco selvagem.
Em meio a um elenco acertado, que só consegue passar naturalidade a todo momento, Oscar Martinez é o nome. Seu protagonista já é repleto de camadas, contradições e não-ditos - e o filme é um estudo de personagem que se desdobra em estudo social e volta a ser particular dos mais ricos, por tão interior - mas ele constrói além. Por dentro do que mostram sinopse, trailer e pôster, jaz um homem que literalmente não encontra saídas. Seus sorrisos parcos não encontram eco no olhar, um quase deserto sem luz. É nos ombros de Martinez que o filme encontra reverberação, se propaga e emana seu lirismo na terra infértil que pode vir a ser o futuro.
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