9,0
Enquanto a estreia de A Bela e a Fera se aproxima, vemos como o investimento da Disney na recriação em live-action de seus clássicos animados foi se consolidando talvez como a principal frente do estúdio hoje. Essa prática se alia a uma tendência geral da Hollywood contemporânea de buscar, em alguns produtos, personagens e universos já carregados de afeto nostálgico, material para novas produções. E é a Disney mesmo, em sua expansão corporativa, que tem sido uma das principais responsáveis por levar isso adiante, com os novos filmes do universo Star Wars e o imenso material em audiovisual que é produzido a cada ano para o Marvel Cinematic Universe.
Apelando para o afeto dos fãs históricos enquanto buscam cativar um novo público nos cinemas, essas novas produções da Disney denunciam o fortalecimento de uma zona de conforto em Hollywood. Investe-se onde o resultado é certo. Por isso, a escolha de adaptar Meu amigo, o dragão me pareceu, se não animadora, curiosa.
O filme original, pouco lembrado, dificilmente remete a uma Disney clássica ou de grandes sucessos. Meu amigo, o dragão, ao contrário, é um filme do longo período de crise criativa do estúdio, que durou da morte de seu fundador, em 1966, até o lançamento de A Pequena Sereia, em 1989. Algumas pérolas foram lançadas nesse tempo, mas Meu amigo, o dragão certamente não é uma delas. Notavelmente datado para um filme de 1977 (lembremos que naquele ano foi lançado o primeiro Guerra nas Estrelas), ele parece mais contemporâneo a Canção do Sul, um filme 30 anos mais velho. Ainda que tenha suas qualidades, é definitivamente um filme da crise.
Se a escolha do material por si só já é surpreendente, o filme que resultou dessa escolha não é nada menos que admirável. Completamente diferente do original em termos de narrativa, personagens e tom, o novo Meu amigo, o dragão trouxe do primeiro justamente essa aparência de pequeno-filme, esse aspecto de crise criativa, no que ela tem de mais construtivo. Meu amigo, o dragão não poderia ser outro Mogli, o menino lobo, e me parece que isso estava muito claro tanto para o estúdio — que não investiu tanto no marketing deste filme quanto no de outros — quanto para o diretor, David Lowery.
Lowery na Disney de hoje parece um sujeito tão fora de lugar e despercebido quanto o filme que dirigiu para o estúdio. Seu longa-metragem anterior, o bom Amor Fora da Lei é até excessivamente contemplativo. Em Meu Amigo, o dragão, o diretor parece ter mais controle de sua obra, realizando um filme que flui com a graça das melhores fantasias infantis que já passaram pelo cinema, como Meu Amigo Totoro e Dumbo, por exemplo.
A história é simples e se passa no período de pouco mais de um dia. Pete (Oakes Fegley), um garoto órfão que vive na floresta com um imenso dragão verde, é resgatado por uma guarda florestal, Grace (Bryce Dallas Howard, bastante carismática), que enfrenta cotidianamente os avanços da indústria madeireira local. O conflito de interesses entre Grace e os trabalhadores é também um conflito familiar, no que seu marido e cunhado trabalham para a mesma indústria contra a qual defende a floresta. E o dragão — nomeado Elliot, por Pete, a partir de um personagem de um livro infantil — existe até esse momento como uma mera lenda do lugar, alimentada pelo pai de Grace (Robert Redford).
O que poderia ser didático, como a questão ambiental, é sutilmente evocado por Lowery em sua contemplação da paisagem local e no modo como ele se apropria dos madeireiros e de seus armazéns como parte dessa paisagem. A qualidade da direção de Lowery não está no olhar que direciona às coisas enormes — e não me entendam mal, o gigantesco dragão é um dos melhores usos de CGI do cinema recente —, mas sim às pequenas, como o gesto de abrir um livro infantil e contar uma história; ou a primeira meia-hora do filme, dedicada a observar as brincadeiras na floresta de Pete e Elliot, o dragão, como se observasse duas crianças brincando em um quintal. Nada “acontece”, mas toda a relação entre os dois personagens e entre eles e aquele lugar se faz presente.
Meu amigo, o dragão é realmente diferente das outras releituras recentes do estúdio. Ele recusa a narrativa épica, a necessidade de expor os mais recentes avanços dos efeitos visuais, e a ideia de que algo-grande-está-sendo-feito que perpassa cada nova releitura do estúdio, desde Alice no País das Maravilhas até o marketing do ainda inédito A Bela e a Fera. O filme fica, no entanto, com a nostalgia. Mas, ainda mantendo-se de toda maneira especial, a sua nostalgia não é aquela que simplesmente coloca de volta no mercado um produto reconhecível, mas a nostalgia reflexiva e pessoal daquele que abre um livro infantil e percebe, no ato da leitura, a passagem do tempo.
como aasiste filme nessa joça
Alugando ou comprando ou indo ao cinema ou assistindo em algum sistema de streaming atual.
Olha, confesso que quando vi essa nota 9, achei exagerada. Mas acabei de assistir e puta que pariu: que filme! Realmente não esperava algo tão puro, simples e ao mesmo tempo rico narrativa e imageticamente falando. Surpresa do ano e um dos melhores desse ano.
Tem tudo pra ser um clássico daqui a alguns anos.