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Críticas

Cineplayers

Dos extremos do amor.

9,0

Em linhas gerais, a obra de Max Ophüls pode ser sintetizada como um grande ensaio sobre o amor. Porém, este amor não corresponde àquela representação idealizada, típica dos romances açucarados que nos arrancam dezenas de suspiros. O sentimento entre um homem e uma mulher, por maior que seja sua beleza no momento em que é vivido em tela, está sempre cercado por fragilidades, intervenções e consequências que podem ser circunstancialmente trágicas para alguém, seja a eles mesmos ou outras pessoas à sua volta — afinal, nesta infindável ciranda, alguém sempre sai ferido. Nas histórias de Ophüls, os amantes não vivem em uma redoma de vidro; estão em contato direto com a sociedade que habitam e, portanto, são suscetíveis às mais diversas interferências; à paixão por outra pessoa, ao desejo de um deles por outro alguém, a um ocasional desvio moral, etc. Ophüls não ignora nenhum dos lados deste jogo. Seja o mais romântico dos beijos ou um passeio de carruagem ao som de uma doce trilha-sonora; seja a desilusão, o desespero, o desfecho trágico de um romance proibido ou a necessidade de se superar o passado: para a representação do amor em seus filmes ser plena, ele nos permite experimentar ambos os extremos.

Liebelei (idem, 1933) é o primeiro trabalho erigido por Ophüls em torno desta ampla visão sobre o amor, que seria desenvolvida mais tarde em filmes como A Ronda (La Ronde, 1950) e, especialmente, na obra-prima Desejos Proibidos (Madame de..., 1953)  — para os quais também poderia ser considerado um filme-esboço. Poderia, mas não será, porque tratar Liebelei como um esboço seria reduzir a intensa experiência à qual Ophüls submete o espectador com este monumento cinematográfico — que notavelmente representa o momento em que o diretor, poucos anos após sua estreia no cinema, começaria a evidenciar a formação de uma misé-en-scene e de um cartilha de temas que viria a ser especificamente sua, de seu cinema.

Em Liebelei, a representação do amor e de suas nuances ocorre em diversos pólos. A história parte de um encontro casual entre dois militares e duas garotas em uma ópera. Um dos homens comanda as investidas e demonstra estar muito mais interessado nelas do que o outro. O motivo da distância de seu colega conhecemos poucos minutos depois: o coração bate por outra mulher. Mas é mais complicado do que isso: bate pela baronesa do reino ao qual servem, a mulher de seu superior, com quem tem um caso extraconjugal às escondidas, e por quem o amor é retribuído. O círculo de relações de Liebelei, tipicamente ophulsiano, percorre diversas formas e representações do amor, e começa a apertar à medida que a inocente jovem se apaixona perdidamente pelo militar e este passa a correr mais perigo por causa das fofocas que rondam o reino, indicando que ele seria o amante da baronesa local.

A fama de Max Ophüls se consolidou no meio cinéfilo principalmente por seus travellings elaborados e pela extrema habilidade em fazer dos planos de seus filmes imagens em movimento – que podem assumir novas perspectivas a partir de um simples deslizar da câmera, conduzindo o olhar do espectador àquilo que o filme quer que ele veja/saiba/sinta. Mas o que impressiona mesmo na composição visual e no melodrama de Liebelei é a força dos planos fixos sustentados por Ophüls em momentos-chave de sua narrativa, a intensidade que transborda da tela e da impressionante expressividade de seus atores, amparada pela precisão dos cortes, especialmente naquelas sequências em que seus personagens encontram-se próximos dos conflitos máximos que suas relações (de amor ou de poder) podem demandar.

É impressionante a encenação de Liebelei, e cito em especial o uso planejado do close (e o saber usar um close, algo que parece ter se perdido com o tempo e encontra raros respiros no cinema contemporâneo) em dois momentos muito específicos, que carregam no olhar de seus atores, no timing preciso dos planos, um poder dramático devastador. No primeiro deles, logo ao início, a declaração do militar à baronesa, ao mesmo tempo preenchida por amor e lamentação, onde compreende-se o prenúncio da tragédia de Liebelei. Tragédia cujo peso e inflexão serão sentidos mais tarde, já ao final do terceiro ato, no segundo momento de uso do close beirando à perfeição: quando a jovem apaixonada recebe de seus amigos a notícia da consumação da tragédia – quando Ophüls invade a privacidade de sua personagem para nos tornar parte dela num plano único de dor insuperável, uma imagem que parece durar a eternidade.

Se ao longo do filme podemos vivenciar o máximo da beleza de um melodrama, por exemplo, com aquele passeio de carruagem pela neve (te amarei para sempre, a mais banal das promessas de amor, também um prenúncio irrevogável da desilusão), o terceiro ato é todo ele um contraponto devastador, que surge a partir de um crescendo de tensão e amargura até chegar a um desfecho asfixiante – e o plano final, em que a câmera de Ophüls, aí sim, movimenta-se panoramicamente para deixar o apartamento e refazer solitariamente um percurso pela paisagem coberta de neve, é de marejar os olhos. Em Liebelei, primeira verdadeira obra-prima de Max Ophüls, encontramos o que de melhor existe no cinema deste brilhante diretor, percorrendo os ciclos do amor e suas mais diversas passagens, do enamoramento à infidelidade, do esplendor de um beijo apaixonado à dor da perda e da morte; ao para sempre e o valor que ele possui na efemeridade da vida.

Comentários (6)

Lucas do Carmo | segunda-feira, 21 de Abril de 2014 - 23:18

Cinema irresistivel do Ophuls, deu vontade louca de rever. Acho que A Ronda é meu favorito (se eu rever é capaz de entrar nos favoritos), mas tbm amo os outros. Diretor muito, muito obrigatório.

Rodrigo Torres | terça-feira, 22 de Abril de 2014 - 03:31

Você está bem, Daniel? 😲

Heitor Romero | terça-feira, 22 de Abril de 2014 - 12:45

Sou incondicionalmente apaixonado pela câmera de Ophüls, e pelo cinema dele. Vi Liebelei nesse fim de semana e fiquei surpreso em dar de cara para uma crítica dele.

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