8,0
Hannah é dedicada a suas tarefas. Ela trabalha como secretária doméstica em casas de família. Faz um curso de teatro para alunos 'fora do padrão'. Cozinha, limpa. Tudo com extremo afinco e dedicação. O diretor Andrea Pallaoro radiografa essas atividades domésticas de Hannah realizadas e filmadas de maneira obsessiva, cuidadosa. Enquanto realiza tais tarefas, Hannah parece habitar um outro mundo que não o seu, distante e desconectado com sua realidade tão diferente daquele todo. Hannah na tela é Charlotte Rampling, uma britânica de fleugma intacta que emprestou seu talento a toda Europa e vem passeando há tempos por países dos mais diversos, aqui por exemplo uma produção italiana. O rosto e o porte de Charlotte a descola da personagem descrita acima, mas Hannah continua a limpar. Por que?
Essas e outras camadas serão observadas nesse longa que passou com sucesso pelo último Festival de Veneza, consagrando sua atriz principal com uma incontestável Copa Volpi de interpretação feminina. As camadas no entanto serão tratadas com minúcia e cuidado, e nem toda será desenrolada a contento do espectador mais ávido por respostas, muitas virão das conexões que cada um fizer com aquele quadro apresentado. O roteiro, escrito a quatro mãos pelo próprio Pallaoro e por Orlando Tirado, tem como principal intenção não trazer a tona os fatos em sua concretude, mas fazer o desenho da personagem com exatidão e nuances, em notável trabalho de conexão entre o exigido e o alcançado. Pode-se dizer inclusive que dificilmente Hannah existiria sem Charlotte.
Da lente do diretor extraímos a precisão igualmente conjunta entre as ações da protagonista e sua insistência em manter o interesse por cada um daqueles detalhes mínimos que transformam aquela rotina em 'tarefas que precisam serem cumpridas'. Pallaoro com certeza irá incomodar um bloco de espectadores com sua servidão para com a personagem, o modo como cada gesto importa e faz diferença. É através de cada um deles que o contato de Hannah com o marido prestes a ser preso e o filho que a repele se transfiguram de algo banal a momentos de inquieta fricção, que interrompe a espiral repetitiva da personagem com novos flashes de memória ou projeção que não apenas complementam a narrativa como também nos instiga a ressignificação de cada nova cena, e a construir uma Hannah cada vez mais complexa e humana.
Se engana quem pensa que a aparente monotonia do filme é um estorvo para o espectador exigente. Sucinto em sua duração, o jovem cineasta capta com sensibilidade não apenas o óbvio crepúsculo de uma mulher mas também as motivações muito genuínas pelos infortúnios da mesma e de seu entorno, que a transformaram em pária de sua própria existência. Com riqueza de detalhamento de planos que farão a festa de olhares mais apurados aos detalhes gráficos, se Hannah não é de fato uma pipoca na matinê, também passa longe de ser um programa enfadonho ou arriscado, apenas trazendo discussões morais e éticas para o núcleo externo a projeção, ou seja, o interesse de Pallaoro é o debate extra fílmico, com ênfase no binômio público x privado, tanto no que concerne às atitudes quanto às emoções. O externo mas principalmente o interno.
Com a ajuda de sua intérprete, o realizador não apenas alcança as notas ambicionadas como deixa alguns solos para o espectador dar. Ciente da autonomia que o filme dá, Pallaoro não está disposto a responder as perguntas que eventualmente fará - sinal da confiança depositada. Ao público caberá o favor de retribuir a esse acerto de contas pessoal com a absorção e posterior reflexão acerca da culpa que cada um de nós carrega. Hannah tenta se comunicar e interagir e é impedida repetidas vezes, e nessa equação só lhe resta acatar. O preço da subserviência é uma das muitas questões levantadas pelo longa, a disposição da discussão que cada um leva ao final da sessão
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário