Um filme singelo e especial de um dos melhores diretores japoneses de todos os tempos, Yasujiro Ozu.
Yasujiro Ozu é famoso por filmes cujos temas, em geral, não variam muito. Sempre retratando a família japonesa vivendo a dualidade do lado amargo e doce da vida, especialmente em seus trabalhos pós-guerra, seus filmes são um bom exemplo da mentalidade de Truffaut, de que só fazemos um filme na vida, e o resto dela passamos refilmando-o de diversas maneiras. Ozu chega até a fazer releituras de alguns de seus filmes (como Bom-dia e Dias de Outono, que são levemente baseados em Eu nasci, porém... e Pai e Filha), mas apenas um deles pode ser classificado como uma refilmagem, e este é Ervas Flutuantes.
Baseado no seu clássico de 1934, Uma História sobre Ervas Flutuantes (Ukigusa Monogatari), este filme conta a estória de uma companhia de atores de teatro kabuki que, durante suas excursões pelo Japão, resolve aportar numa pequena ilha de pescadores. A figura central do filme é Komajuro, um ator de meia-idade que foi um dos formadores da companhia. Quando chega na ilha, ele passa a ir todos os dias visitar uma antiga amante, Oyoshi, que é dona de um bar de saquê. Há anos tiveram um filho juntos, Kiyoshi, que acabara de se formar na escola e foi trabalhar nos correios. Porque Komajuro sempre foi um ator viajante e apenas esporadicamente estava presente, ele e Oyoshi sempre esconderam de Kiyoshi a identidade do pai, dizendo que ele era apenas um tio e que o pai de verdade dele tinha morrido há muito tempo. O velho ator, vendo como seu filho cresceu, tornando-se uma pessoa de bem e estudiosa, aproveita esta oportunidade na ilha para conhecê-lo melhor, passando então a maior parte do tempo fora. Isso atiça a curiosidade de Sumiko, sua atual amante e principal atriz da companhia, que acaba descobrindo sobre a família secreta do mestre e, louca de ciúmes, contrata uma jovem e bela atriz da companhia para seduzir Kiyoshi, afim de afastá-lo do caminho dos estudos que seu pai sempre sonhou para ele.
Bem mais intenso e melodramático que os outros filmes pós-guerra de Ozu (devido à sua influência do original silencioso), Ervas Flutuantes é um retrato de uma família pouco convencional à beira do colapso. Evitando um maniqueísmo quase convencional em famílias perturbadas, Ozu transforma todos seus personagens em figuras complexas e, por mais que reprovemos suas atitutes, todas têm uma razão de ser. Entendemos os motivos pelo ciúme de Sumiko, assim como a ira de Komajuro ao ver o filho ser "desvirtuado" ao levar adiante o romance com Kayo. Aliás, essa relação de pai e filho é um dos pontos mais interessantes da trama. O velho mestre já se aparenta amargurado por não ter tido a chance de ver o filho crescer e de ser tratado como um mero tio, e até o seu único consolo - de que o filho se tornasse um homem estudioso e não acabasse como ele - acaba voltando-se contra ele, quando o erudito Kiyoshi critica a sua atuação como muito exagerada e sem profundidade. Ainda assim, percebemos sua tristeza ao constatar que Kiyoshi fugiu com Kayo: "- Eu achava que meu filho fosse mais inteligente, mas ele é que nem eu". E, na sua angústia em corrigir o comportamento do filho, acaba agredindo tanto ele quanto a Kayo, numa inversão de valores de que ele logo se arrepende, contastando que não tinha direito de exigir autoridade paternal depois de uma vida inteira de ausência. Sua total preocupação com o filho acaba trazendo efeitos para a sua companhia também. Depois de um longo período parados na ilha, com suas apresentações diárias cada vez mais vazias (devido ao fato de estarem numa ilha tão pequena), o empresário da trupe vai embora, e um dos atores foge com vários equipamentos e dinheiro, deixando a companhia falida.
Apesar de contar basicamente com o mesmo roteiro do original, estes se distanciam bastante no tom. Ervas Flutuantes foi filmado pela Daiei, num dos únicos filmes de Ozu a ser feito fora da sua companhia habitual, a Shochiku. Com isso, vieram um novo elenco (Chishu Ryu só tem uma breve ponta, e Setsuko Hara sequer aparece), um novo cinegrafista e uma nova mentalidade da empresa. O elenco talvez seja um dos pontos baixos do filme; Ganjiro Nakamura fez um ótimo trabalho (apesar de ser um ator de teatro, e não cinema), tanto que foi chamado novamente por Ozu para fazer Fim de Verão, mas é impossível evitar comparações com a fantástica atuação do Takeshi Sakamoto no original, que já era um regular do Ozu em fazer aquele tipo de personagem; Haruko Sugimura acaba fazendo um trabalho bem contido como a ex-esposa Oyoshi, eliminando boa parte do drama da personagem original representada por Choko Iida na versão de 1934; mas o distoante mesmo é Hiroshi Kawaguchi(que só conseguiu o papel devido a um pistolão dentro da Daiei) como o filho Kiyoshi, apresenta uma atuação bem esquemática e fria, longe da atuação do Hideo Mitsui no original (ele agora teve uma ponta como um dos atores). O resto foi bem, mas, no geral, o elenco ficou abaixo nesta nova versão. A fotografia, por outro lado, é extremamente marcante, fazendo deste filme um dos mais belos de Ozu. Este foi apenas o terceiro trabalho colorido do diretor; os dois primeiros, Flor de Equinócio e Bom-dia, foram feitos pelo habitual do diretor, Yuharu Atsuta (um grande cinematógrafo, diga-se de passagem, mas ainda inexperiente em filmes de cor), enquanto este foi feito pelo lendário Kazuo Miyagawa, um dos mais famoso cinematógrafos do Japão, responsável por Rashomon, Contos da Lua Vaga Depois da Chuva, assim como vários dos últimos filmes de Mizoguchi e de Ichikawa. O resultado é uma fotografia mais escura e dramática que dos outros filmes de Ozu, mas extremamente bela.
No final das contas, Ervas Flutuantes ficou um filme bem sóbrio e dramático, além de explícito (como quando Komajuro bate em Sumiko e Kayo, ou quando Kayo e Kiyoshi se beijam ardentemente). Ainda assim, ele apresenta o clássico humor do diretor (como quando os jovens atores saem caçando qualquer rabo-de-saia na vila) e uma trilha sonora encantadora, que serviu de base para a trilha do seu último filme, A Rotina tem o seu Encanto. O título "Ervas Flutuantes" diz respeito à uma famosa analogia sobre as ukigusa, um tipo de erva japonesa que é arrastada pelos rios sem rumo, e é usada como metáfora para a vida dos atores. Ao final do filme, com a companhia desfeita e cada um para seu lado, Komajuro e Sumiko põe suas diferenças de lado e se juntam para tentarem a sorte em outra cidade, pois, como as ukigusas, a vida não lhes dá o direito de pararem.
Excelente crítica. Acabo de assistir mais esta pérola do Ozu. Ele é com certeza um dos meus diretores favoritos. Apenas quanto à falta de intensidade em algumas atuações: isso não chega a me incomodar muito, já que o que me agrada mesmo no Ozu é a sobriedade, a tranquilidade rotineira, doméstica, familiar. Abraços!