Obra-prima da Nouvelle Vague japonesa. Moderno até para os dias atuais.
Duplo Suicídio em Amijima foi lançado no Brasil em uma versão meio vagabunda pelo selo Magnus Opus – nada a ver com a versão remasterizada do prestigioso selo norte-americano The Criterion Collection disponível na loja deles na rua Bela Cintra, em São Paulo. De qualquer forma, vale a pena ver esse filme japonês de Masahiro Shinoda, filmado em 1969, no DVD brasileiro, pois é considerado um dos mais importantes feitos da chamada Nouvelle Vague japonesa.
A história foi adaptada de uma peça bunraku, o teatro de bonecos japonês. O diretor não esconde a origem como faz questão de salientar a dramaticidade da trama, que poderia ser considerada ingênua, direta e um tanto esquemática, dada as características desse tipo de arte, em tese feita para divertir crianças (nem sempre) ou comunicar-se diretamente com o público.
Assim, se no palco os atores que manipulam os bonecos vestem-se completamente de negro e estão o tempo todo do lado das personagens, o diretor providenciou o mesmo para seus atores de carne e osso: todos os afazeres dos atores são ajudados por vultos negros, que todos em cena tem pelo menos um – há ecos do distanciamento de Bertold Brecht. Os cenários também criam o ambiente onírico: formado de telas magníficas, pintadas em papel transparente, com os platôs cobertos de caligrafia, como se estivesse saindo diretamente do livro. Ao mudar de cena, os vultos trocam a mobília e os adornos. É impressionante.
Conta a inesquecível história de amor de um comerciante de papel por uma geisha. Ela, visada pelo mais rico comerciante local, precisa do dinheiro dos clientes para sustentar a mãe, que morre de fome no interior. Ele, casado e com dois filhos, não vê outra maneira de consumar seu amor – uma vez que ele não tem como sustentar a geisha só para si – a não ser pela morte. Propõe à amada o duplo suicídio na ponte. Ela concorda. Tentarão durante todo o filme consumar esse pacto mortal.
Como era comum na época, o contexto sexual era forte. Antes de darem cabo a suas vidas, os amantes farão amor perto do templo local, ao som das badaladas do sino da Indonésia. É algo belo, desesperado e ousado até hoje, não só pela felação e pelos corpos nus obcecados, mas pela infinita beleza da cena, numa das poucas externas do filme – ela foi discutida, no início do filme, pelo diretor e roteirista ao telefone, que seria feita sob os auspícios do teatro kabuki.
Colabora para tanto a extraordinária fotografia em preto-e-branco, a impecável direção de arte, os figurinos brilhantes e a interpretação irrepreensível da atriz Shima Iwashita (mulher de Shinoda), que (me perdoe o leitor que não viu o filme, mas sou obrigado a contar esse detalhe) interpreta de maneira brilhante tanto a cortesã Hoharu com a esposa submissa do comerciante de papel.
Além disso, o filme contou com a ajuda do célebre compositor Toru Takemitsu, que se encarregou não apenas da música, mas da orquestração de todos os ruídos e diálogos do filme. Takemitsu foi ainda o responsável pelo roteiro, apenas retocado por Taeko Tomioka, especialista no dialeto de Kansai, onde a história se passa. Preciosismos? Nunca. Apenas apuro de artistas impecáveis. Impossível não se deixar espantar com a cena em que, irado, o personagem principal destrói os cenários, revelando como eles foram construídos.
Ex-assistente de Yasujiro Ozu, Masahiro Shinoda é um dos três pilares da Nouvelle Vague japonesa, ao lado de Nagisa Oshima (Tabu) e Yoshishige Yoshida (Purgatório Heróica, já comentado aqui no Cine Players). Aqui levou o cinema japonês ao seu auge de estilização. Shinoda representava o que havia de mais moderno então, utilizando-se, sem ironias, a mais pura tradição ancestral japonesa.
Talvez a minha estilização preferida.
É de arregalar os olhos e admirar.
Bela crítica, o trabalho estético em cima desse filme é pra ficar pra história mesmo!