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Críticas

Cineplayers

Descobrir um novo mundo através dos matizes da lente de Wim Wenders.

10,0

Quando a criança era criança
Não sabia que era criança
Tudo lhe parecia ter alma
E todas as almas eram uma

(...) Quando a criança era criança
Era época dessas perguntas:

(...) Um lugar na vida sob o sol não é apenas um sonho?
Aquilo que eu vejo e ouço e cheiro
Não é só a aparência de um mundo diante de um mundo?

O poema do qual os trechos supracitados fazem parte nos é narrado inteiramente na abertura de Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin, 1987), e evoca as lembranças de uma época em que a inocência diante do mundo fazia parte da vida. Como sabemos, as crianças são inocentes a quase tudo o que as rodeia, e por isso se aventuram, inconsequentes, no ambiente, a fim de descobrir o funcionamento das coisas. Elas são corajosas ao se introduzir nessa jornada de descobertas, de querer entender os porquês dos porquês, de perguntar tudo sobre tudo, e nunca parecem satisfeitas com as respostas que encontram. O que muitas vezes não notamos é que esse anseio de querer saber sempre mais, de querer desvendar tudo o que nos desperta interesse, prevalece dentro de cada um mesmo depois da infância, só que talvez em menor escala, ou oprimido pelo embaraço ou pelo medo. E é exatamente sobre isso que se trata Asas do Desejo, um poema em celulóide que nos apresenta a eterna busca do homem por aquilo que lhe é desconhecido.

Esse ato de desvendar é materializado no filme através do símbolo político do muro de Berlim. Toda a trama se passa na Berlim Ocidental antes da queda do muro, onde nos são apresentadas duas visões sobre o mesmo tema – a dos anjos (em preto e branco) e a dos seres humanos (colorida). É uma época dividida não apenas pelo muro literal, mas também por ideologias, pela guerra fria, saudade, dor, economia, política e insegurança. Um cenário de devastação, marcado por pessoas solitárias e oprimidas, será a base para entendermos a função dos anjos Damiel (Bruno Ganz) e Cassiel (Otto Sander) na história, que passam o tempo todo consolando essas pessoas o máximo possível – talvez nem sempre com sucesso.

O que para nós pode parecer uma tarefa nobre e gloriosa, na verdade desperta em Damiel um desejo desnatural, inexplicável, de conhecer o mundo mortal plenamente. Porque por mais que seja capaz de entender os anseios no coração de cada pessoa, ele não consegue sentir o mesmo que elas sentem fisicamente por conta de sua condição espiritual superior. Ele não vê em cores, não sente contato físico de ninguém, e isso aos poucos vai lhe despertando o velho desejo de todos de poder entender o que lhe é novo, o que lhe é desconhecido. Para Damiel, o mundo terreno é algo a ser descoberto, mesmo que seja apenas para sentir a mesma dor que os seres humanos sentem. E esse desejo se tornará incontrolável quando passar a desenvolver um sentimento romântico por uma solitária trapezista (vivida por Solveig Dommartin).

Na outra ponta, temos várias pequenas e passageiras tramas com os seres humanos ajudados pelos anjos. Através deles entenderemos todas as frustrações e decepções que, de uma forma ou de outra, dominam os seres humanos em geral. E por trás de todas essas questões está a grande necessidade humana de entender os porquês da vida, a eterna busca por explicações suficientes que justifiquem todo o sofrimento do mundo – algo que somente alguém espiritualmente superior como os anjos poderia entender. Ou seja, enquanto os anjos desejam sentir o carinho, o afeto e até mesmo a dor, os humanos dariam tudo para poder entender a razão das coisas serem como são. Um anseia descobrir o mundo do outro.

A barreira divisora entre o mundo político é claramente representada pelo muro de Berlim, que acopla em si todas as explicações históricas e políticas envolvidas. Restou então para Wim Wenders criar uma barreira também literal e palpável entre o mundo de homens e anjos, através de uma fotografia mista em preto e branco e colorido. Esse recurso não era inteiramente necessário para nos fazer entender essa diferença metafísica, mas esteticamente contribuiu muito para nos fazer enxergar um tipo de beleza a respeito dessa eterna necessidade de todos em querer descobrir "o outro lado". Fica muito mais concreto para nós aceitarmos o lado angelical dos personagens através do preto e branco, de modo que não nos surpreende o fato de Dammiel desejar abdicar de sua posição privilegiada para se igualar a qualquer mortal. Ainda nessa escolha de cores, Wenders acaba passando uma mensagem de esperança para sua Alemanha, ao mostrar que por pior que seja a situação, o mundo ainda é “colorido” e passível de mudanças para nós humanos. Sendo assim, as caraterísticas espirituais da obra não possuem um cunho religioso ou doutrinal, e sim servem para estabelecer um contrapeso em relação aos maiores desejos de mudar e entender do homem.

Outros truques na direção enriquecem ainda mais o conteúdo presente nas entrelinhas de Asas do Desejo, como a câmera em constante estado de mudança de Wenders. As várias divisões tão presentes na obra ganham uma perspectiva ainda mais ampla quando enxergamos o mundo da maneira dos anjos, como se estivéssemos no céu, ou até mesmo na Terra, sob o olhar dos homens. A linguagem visual é riquíssima e realça com muita sensibilidade as questões envolvidas no roteiro. De certa forma, é como se o diretor estivesse nos fazendo descobrir um novo mundo – e não se trata apenas do mundo angelical, mas também redescobrir o nosso próprio universo, sob uma perspectiva otimista e repleta de novas possibilidades (uma experiência que só poderia ser possibilitada pelo cinema, um universo novo que nós como espectadores desejamos desvendar). Voltamos então ao início do filme, naquele poema sobre as crianças e toda sua inocência diante do desconhecido.

Asas do Desejo é um daqueles filmes raros onde tanto técnica quanto conteúdo são irrepreensíveis, e só poderia ter sido entregue por um diretor sensibilíssimo como Wim Wenders. Nessa retratação do mundo dominado por barreiras divisórias, o que se sobressai é a mensagem de que nenhuma delas é definitiva, e que mesmo nós podemos lidar com o desconhecido, com o inexplicável, mesmo que talvez nunca cheguemos a desvendá-lo por completo. Diante da barreira de uma tela de televisão ou de cinema assistindo a um filme desse porte, somos como crianças desejando cruzar a linha limitadora entre realidade e fantasia; claro que fisicamente isso nunca será possível, mas por dentro todos nós já ultrapassamos esse tipo de limite.

Comentários (9)

Bruno Kühl | sábado, 02 de Junho de 2012 - 01:19

Texto sensacional para um dos poucos filmes na história do cinema que chegaram perto de retratar a alma humana em toda a sua magnitude. Wenders é amor S2

Heitor Romero | domingo, 03 de Junho de 2012 - 11:05

Obrigado, acho esse filme mto especial. Escrever sobre ele foi um privilegio. :)

Caio Santos | domingo, 03 de Junho de 2012 - 11:16

a cena da minha foto é a mais bela, quando ele vê o sangue

Francisco Bandeira | sexta-feira, 20 de Setembro de 2013 - 05:30

Bruno Ganz (um dos atores mais subestimados do cinema) e Henri Alekan merecem um parágrafo cada um por seus trabalhos simplesmente impecáveis.

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