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Críticas

Cineplayers

Resnais eterniza, em seu derradeiro filme, a imagem de um cineasta que não se limitava a zonas de conforto.

8,0

Em toda sua euforia criativa nos anos sessenta, Alain Resnais brincava com o tempo para deflagrar, por vezes, o amor de seus personagens, mesmo em contextos obscuros. Sem cair no comodismo narrativo, o cineasta filmou, durante seus últimos anos, a farsa em seu universo para encontrar nela a potência da verdade. Fez isso literalmente em alguns de seus últimos filmes, onde peças de teatro podem se confundir com o real, servindo de catarse a seus personagens. Flertando com a morte (ironicamente), Resnais ambienta seu derradeiro filme Amar, Beber e Cantar em poucos cenários, espacialmente limitados e claramente artificiais.

Quando se descobre que George irá morrer, seu grupo de amigos decide chamá-lo para atuar na peça de teatro em que estão participando, a fim de descontraí-lo. Misturando propositalmente os diálogos ensaiados para a peça com os reais, num jogo que confunde tanto o espectador quanto os protagonistas, Resnais se vale de uma mise-en-scène pontuada, onde cada discussão é traduzida pelos movimentos dos atores no quadro – podendo, inclusive, serem repetidos, como se nos permitisse adivinhar o que alguém fará em dado momento (sempre que o agricultor ficar nervoso por sua esposa, por exemplo, estejam certos de que chutará o ar). Nesse jogo, o veterano francês não modera na acidez ao tratar a vida de seus personagens, deixando que o ridículo surja naturalmente em forma de histeria, enquanto efeito cômico, embora os isente de qualquer julgamento moral. Ao contrário: parece adorar seus personagens e os trata com o maior cuidado possível.

No bojo da monotonia da vida de casado da classe média, onde o sexo não existe há tempos e o álcool como fuga precisa ser escondido para evitar julgamentos, George surge muito mais como um espectro que assombra esse universo do que um personagem com existência material, sendo essencial a sua não aparição. Ou seja, importa o que o personagem acarreta na vida dos seus amigos, não sua presença física. O desejo sexual por George desnuda a necessidade de Kathryn (Sabine Azèma) em retornar, mesmo que momentaneamente, à sua vida “selvagem” do passado; a farsa vivida por Tamara (Caroline Sihol), sabendo da traição de seu marido sem reagir fortemente a isso, tendo finalmente a oportunidade de se vingar; a saudade enrustida de Mônica (Sandrine Kiberlain) pelo passado, sem conseguir jamais se livrar de sua vida com o ex-marido, buscando retornar brevemente a esse contexto, valendo-se de altruísmo puro enquanto desculpa.

Uma espécie de espírito da juventude pairando sobre o mundo acomodado dos personagens, George revela tudo o que há de mais artificial na vida de casais aparentemente felizes. A fotografia satura as cores para dar vida onde, conforme descobrimos, a felicidade não encontra um espaço estável. O espetáculo montado é completamente destruído, permitindo que os interiores das casas, escondidos todo o tempo, também sejam vistos. Aí residem os momentos de maior força dramática: as pessoas podem desvelar seus segredos maiores sem pudores. Resnais separa, assim como no próprio teatro, os espaços geográficos da encenação e da realidade. Dessa forma, George, enquanto representante do “espírito jovem” sufocado pela velhice (seu sepultamento é, não só físico, mas também daquilo que representa), é inserido menos para desestabilizar a ordem do que para fazer com que os personagens descubram no sentido mais profundo o que é viver a velhice. As personagens femininas, longe de voltarem simplesmente a um convencionalismo monogâmico, descobrem que a felicidade se encontra dentro de seus próprios lares, encontrando muito valor na pacatez do estilo de vida pelo qual optaram viver. Assim, George é muito mais catártico quanto a restabelecer a ordem do que a quebrá-la – novamente, os momentos mais profundos de sinceridade entre os casais se dão no interior da casa.

Tratando tudo com uma leveza envolta na divertida histeria das personagens, Alain Resnais despede-se dos seus fãs demonstrando quão bem domina a linguagem para poder subvertê-la. Será lembrado por ter morrido ousando se reinventar.

Comentários (3)

Declieux Crispim | quarta-feira, 23 de Julho de 2014 - 16:15

Muito boa crítica que só aumenta minha vontade vê-lo...

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