Obs: o texto abaixo abrange toda a trilogia O Poderoso Chefão, então vou lhe fazer uma oferta irrecusável: só leia se já tiver assistido os três filmes, ou receba spoilers importantes da saga dos Corleone.
“Eu acredito na América.”
Sei que não são poucos os críticos e cinéfilos ao redor do mundo que discordam da minha opinião, mas o momento mais emblemático e marcante de toda a trilogia O Poderoso Chefão é o encerramento de O Poderoso Chefão – Parte III, em que um idoso e debilitado Michael Corleone (Al Pacino) encontra seu fim solitário na Sicília natal de sua família. É um momento simples e de beleza lírica, que surge como uma recompensa ao espectador que acompanhou a vida inteira do “poderoso chefão” do título através de três atos distintos, representados por três filmes brilhantes que juntos formam uma única e imensurável obra-prima. E se me precipito iniciando esse texto falando sobre a última cena do filme que encerra a trilogia, só posso justificar tal ato pela emoção que sempre me toma de assalto ao presenciar o desfecho da história de Michael Corleone.
"Eu tenho uma fraqueza sentimental pelos meus filhos e os mimo, como você pode ver. Eles falam quando deveriam ouvir.”
Pois, vamos deixar claro desde o inicio: O Poderoso Chefão não é uma história de/sobre máfia. É sobre um gama riquíssima de personagens, suas relações e como agem/reagem diante dos eventos que ocorrem ao longo dos três filme. E no centro dessa galeria de figuras complexas e fascinantes, está Michael Corleone, o filho que sempre foi defendido de todas as intrigas e violência do mundo comandado por seu pai, Vito Corleone (Marlon Brando) e sua família. É sobre o jovem idealista e sonhador, que surge no casamento da irmã trajando sua imponente farda do exército americano, deixando claro desde os primeiros momentos da projeção o quão diferente de todos os presentes na festa é, que O Poderoso Chefão se apoiará ao longo das suas nove horas de duração, se tornando um estudo de personagem que vai fundo naquela figura que, com o passar dos anos não apenas se torna mais um dos homens de terno preto, dos quais tanto procurou se desvencilhar – e tanto procuraram desvencilhá-lo -, como praticamente redefine o conceito que todos à sua volta tinham de um “gangster”, revelando uma crueldade e frieza que deixariam seu pai desapontado.
“Nunca diga a ninguém fora da família o que você está pensando de novo.”
Dito isso, não deixa de ser fascinante ver como Coppola vai aos poucos conduzindo a primeira parte de sua trilogia a nos indicar o verdadeiro protagonista da história que começa a contar ali, substituindo gradativamente a figura do Don Corleone representada pelo patriarca Vito, tão atrelada ao imaginário do filme, por seu filho caçula. Assim, quando Vito ao se negar contribuir com sua influência política e policial na entrada das outras famílias que dominam Nova York no negócio de tráfico de drogas, acaba sendo vitima de um atentado contra sua vida pelo ambicioso Sollozzo (Al Lettieri), Michael logo começa a dominar os negócios da família, revelando-se um estrategista nato – a maneira como antecipa uma tentativa dos inimigos de seu pai de matá-lo no hospital é símbolo de seu brilhantismo, utilizando mesmo as mãos nuas para fingir que está armado e afugentar possíveis rivais -, em contraste com o explosivo irmão mais velho, Santino (James Caan), logo atirando com as próprias mãos no homem que encomendara a morte de seu pai e no policial (Sterling Hayden) que fazia sua segurança particular. A primeira e única vez que veríamos Michael Corleone sujar as próprias mãos com o sangue de seus inimigos. Dali em diante seu reinado de violência, sempre marcado pelo vermelho-sangue, seria calcado em assassinatos ordenados por ele, mas jamais executados por suas mãos.
“Há muitas coisas que meu pai me ensinou nessa sala. Ele me ensinou: mantenha seus amigos perto, mas seus inimigos mais perto ainda.”
Mas, se mencionei no começo desse texto que considero o fim da jornada de Michael Corleone o momento mais emblemático da saga dos Corleone, devo dizer que a cena que melhor representa a ascensão e queda do filho mais novo de Don Vito é mesmo quando seu pai, ainda debilitado pelos tiros que quase lhe custaram a vida, recebe a noticia de que seu filho já não é mais um civil na guerra entre famílias que se iniciara. Apenas com um gesto de cabeça o patriarca dos Corleone deixa claro o quão duro é perceber que o filho a quem tanto protegera de toda a podridão que o rodeia adentrara aquele mundo para nunca mais sair. E é no choro contido do personagem de Marlon Brando que percebemos que aquele homem, tão calejado pela idade e experiência, já antevia a tragédia que aguardava seu filho. É um momento de dramaticidade sutil, mas que acerta em cheio o espectador, muito em função da atuação arrebatadora de Brando, que apenas ao mudar levemente a expressão facial e fazer um discreto gesto de cabeça comunica toda a decepção de seu Vito Corleone.
“Se alguma coisa nessa vida é certa, se a história nos ensinou alguma coisa, é que você pode matar qualquer um."
Decepção que corroeria Don Vito logo em seguida ao ver a resposta aos atos da família Corleone custar a vida de seu filho mais velho, Santino, ou Sonny, como carinhosamente todos o chamam. Massacrado por uma rajada de centenas – talvez, milhares – de balas, na tentativa de defender a honra de sua irmã, sendo no caminho vitima de traição por seu cunhado, Carlo (Gianni Russo). E é na dor de ver o filho destroçado que Don Vito abre espaço para mais duas cenas arrasadoras de Marlon Brando: na primeira, sendo informado por seu filho e consigliere, Tom Hagen (Robert Duvall), da morte de seu herdeiro mais velho, Brando acusa o golpe da noticia com uma falhada sutil na voz e uma expressão de dor logo contornada para exercer a segurança habitual. No outro momento, vendo o estado do corpo do filho, Vito revela um momento insuspeito de fraqueza ao dizer a frase transcrita abaixo, num momento que a atuação de Brando por si só tornaria doloroso e inesquecível, mas que por conta do belo diálogo se torna ainda maior.
“Veja como eles massacraram o meu garoto.”
Seria a primeira e única vez que Don Vito enterraria um filho. Logo depois acertaria uma trégua com os membros das outras famílias de Nova York - "Você fala sobre vingança. Vingança vai trazer seu filho de volta? Ou meu garoto?" -; Michael retornaria em segurança da Sicilia, onde estava escondido e vivendo um romance belíssimo que se encerraria no trágico atentado a sua esposa, Apollonia (Simonetta Stefanelli), assumindo de vez os negócios do pai; e, finalmente, Don Vito Corleone deixaria de vez o nosso mundo. Seu final, não poderia ser mais adequado a alguém que sempre colocou a família acima de tudo: um ataque fulminante enquanto brincava aos risos com o neto. Vito morrera feliz e ao lado de um familiar que amava. Um sabor doce que Michael não experimentaria para si.
É a morte de Vito o estopim para Michael acertar todas as contas pendentes da família que agora comandava. E a maneira escolhida por Coppola para retratar esse acerto final não poderia ser mais operística e bela: uma montagem paralela que traz o assassinato de todos os inimigos de Michael enquanto esse batiza o filho de sua irmã, Connie (Talia Shire), e Carlo. Nas palavras ditas por Michael ele renuncia o pecado. Nos atos ordenados por ele, o abraça. Mas ainda faltava alguém. Um dos responsáveis da morte de seu irmão, Sonny. E transpondo uma linha tênue que seu pai jamais ultrapassaria, Michael ordena a morte do cunhado, Carlo, para desespero de Connie.
“Eu vou fazer uma oferta que ele não poderá recusar.”
Uma barreira que Michael ignoraria de vez ao final do segundo filme ao ordenar a morte do irmão que o traiu – com um calculismo apavorante, ao esperar sua mãe morrer para ordenar o assassinato. E não deixa de ser intrigante constatar como a montagem essa morte também é acompanhada de algo relacionado à religião, já que Fredo (John Cazale) é assassinado após rezar a "Ave Maria" - uma referencia a religião que Michael buscaria no terceiro filme para tentar a redenção após anos de crimes e tragédias pessoais.
“Eu sei que foi você, Fredo. Você partiu meu coração. Você partiu meu coração.”
Mas é mesmo o que ocorre depois dessa cena que representa um dos momentos mais simbólicos e tristes da trilogia, quando três cenas se seguem sugerindo a solidão que acometeria Michael no seu último suspiro de vida: no primeiro momento, Michael observa o assassinato do irmão solitário em sua casa, banhado nas sombras que tão bem lhe acolhem. No outro, vemos um flashback em que Michael, Tom, Fredo e Sonny discutem o futuro do caçula enquanto aguardam a chegada do pai, o interessante nessa cena é observar como pouco a pouco os familiares sentados a mesa com Michael vão deixando o local até sobre apenas o personagem de Pacino, solitário no cômodo. E no terceiro, uma rima visual com o final da trilogia: Michael Corleone sentado solitário e pensativo, exatamente como estaria em seu final. Esse final do segundo filme, por si só, evidencia o cuidado de Coppola e Mario Puzo ao conduzirem o roteiro do filme, que mesmo contando com uma imensidão de personagens relevantes, tramas e subtramas diversas – o segundo filme em especial, afinal se divide entre o presente de Michael Corleone e o passado de seu pai, Vito, chegando aos Estados Unidos e se estabelecendo como comandante dos “negócios” de nova York -, coragem para utilizar fatos históricos e polêmicos como pano de fundo (Revolução Cubana, bastidores da Igreja Católica, a morte do papa João Paulo I), jamais perde o foco no desenvolvimento de sues personagens, principalmente Michael Corleone, revelando-se o esqueleto da trilogia – e apenas o fato de transcrever nesse texto mais de uma dezena de diálogos prova o quão afiado é o texto escrito por Puzo e Coppola.
“Eu passei minha vida inteira tentando não ser descuidado. As mulheres e as crianças podem dar ao luxo de ser descuidadas, mas não os homens.”
Mas se o roteiro da trilogia é seu esqueleto, o elenco é a alma que lhe confere vida. Recheado por dezenas de atuações memoráveis – e apenas uma sofrível, né senhorita Sofia Coppola? -, O Poderoso Chefão oferece atores brilhantes em seus auges: James Caan em performance explosiva e raivosa como o estourado Santino/Sonny; Talia Shire como a sofrida e posteriormente segura Connie; o ótimo John Cazale confere ingenuidade na medida certa para Fredo; Robert Duvall e seu contido e inteligente Tom Hagen; Robert DeNiro emulando o tom de voz e os trejeitos de Marlon Brando como o jovem Vito; a musa de Woody Allen, Diane Keaton que atravessa um arco dramático doloroso como a esposa de Michael, Kay; Andy Garcia em seu melhor trabalho como Vincent, revelando facetas exploradas por Caan no papel de Sonny; além é claro dos dois gigantes da produção: Marlon Brando e Al Pacino, atores que iniciaram as filmagens com a desconfiança do estúdio que não desejava bancá-los e encerraram com duas das maiores atuações da história do cinema, comprovando de vez se tratarem de dois dos maiores nomes que a arte de atuação já viram.
“Não é pessoal, Sonny. É estritamente profissional.”
Em especial Pacino, que vai do filho introspectivo e calmo, de olhar esperançoso e pacifico no primeiro filme até o vulcão sempre perto da erupção no segundo. Em especial, a discussão que tem com a esposa, Kay, a certa altura desse filme revela todo o brilhantismo de Pacino: informado por Hagen sobre o aborto sofrido pela esposa, Pacino surge compreensível e calmo, assumindo a culpa do ocorrido e justificando-o por sua ausência de casa e dedicação aos negócios. É então que a personagem de Diane Keaton revela ter cometido o aborto espontaneamente, dizendo não querer colocar mais nenhum filho de Michael no mundo, e pouco a pouco podemos presenciar o semblante de Pacino se transformar até a explosão do ator em forma de gritos e um forte tapa no rosto da mulher. Um momento impressionante e aterrorizante, que mais uma vez lembra que aquele homem que vemos já não é mais o mesmo que um dia chegou feliz com a mesma mulher no casamento de sua irmã. E se alguma duvida ainda restava, essa se dissipa ao vermos a frieza com que Michael fecha a porta na cara da ex-esposa logo depois. Um momento impactante e que nos leva a temer pelo destino daquela mulher, algo compartilhado por ela própria, como fica claro em um dos melhores diálogos da saga, quando no terceiro filme indagada pelo ex-marido se o odeia, no que a mulher calmamente responde que “não odeio você, Michael. Eu tenho medo de você.”. Algo muito pior que o ódio, já que deixa marcas ainda mais fundas.
“Apenas descanse aqui, pai. Eu vou cuidar de você agora. Eu estou com você agora. Eu estou com você.”
Não que aquela mulher não se deixe seduzir pelo charmoso ex em uma viagem a Sicilia natal dos Corleone, afinal, Michael conserva na idade da velhice seu charme juvenil, além de que o arrependimento pelos erros passados é genuíno, como fica claro ao longo da narrativa do terceiro e derradeiro filme da série. Mas, como poderia se esperar em se tratando de Michael Corleone, o fim dessa história, por mais romântica que poderia se sugerir, pode ser resumido com a frase abaixo, dita pelo protagonista ao perceber que seus dias de “mafioso implacável” não acabariam tão cedo, nem mesmo nomeando o sobrinho Vincent como seu sucessor.
“Justamente quando penso estar fora... Eles me puxam para dentro de novo.”
O resultado disso? Vermelho-sangue. E dessa vez, marcando o ápice da tragédia Shakesperiana representada pela vida de Michael Corleone, um civil é baleado na saída de – vejam só – uma ópera. A filha de Michael, a bela Mary Corleone (Sofia Coppola). Atingida por uma bala endereçada ao pai e morrendo em seus braços enquanto o grito mudo do implacável chefão ecoa em um desespero aterrador. Por ironia do destino, a morte de Mary acontece após uma ópera marcada pela religião que se alternava com os assassinatos comandados por Michael nas obras anteriores. Agora qualquer inocência que pudesse existir na trajetória de Michael Corleone – e não, não existia mais – estava morta com sua filha. Se um dia entrou em sua jornada rumo a destruição de tudo que ama e de si próprio pela proteção da família que amava, agora via a família desmoronar mais uma vez na sua frente por conta de sua sede de poder. O que lhe resta é aguardar solitária, arrependido e amargurado a morte que infringiu a tantos no passado.
"Eu, ah, traí a minha esposa. Eu me traí. Eu matei homens, e eu ordenei que outros homens matassem. Não, é inútil. Eu matei... Eu ordenei a morte do meu irmão; ele me magoou. Eu matei o filho da minha mãe. Eu matei o filho do meu pai."
Inimigos. Amigos. Familiares. Direta ou indiretamente. Pelas próprias mãos ou por meio de terceiros.
Ah, Michael, aposto que desejou essa morte muito antes dela chegar, cansado e arrependimento por tudo que fez.
Ah, Michael, aposto que daria todo o dinheiro e poder que conquistou para fazer tudo diferente e ter uma dança a mais com as mulheres de sua vida – Apollonia, Kay e Mary - que lhe tomam o pensamento antes do piscar de olhos derradeiro.
Mas, como diz a última frase da trilogia que citarei nesse texto – utilizada na divulgação do filme -, “nem todo o poder do mundo pode mudar o destino”... E o seu foi selado quando ouviu pela primeira vez seu alguém se dirigindo a você como “Don Corleone”...
Belissimo texto caro Pedrão!
O filme da minha vida! Já li o livro 3 vezes e pelo menos uma vez por ano assisto toda a trilogia... 😁
Valeu, Lucas.
Sou fascinado pela trilogia e também procuro assistir os três uma vez ao ano, esse texto até foi escrito depois de uma maratona com os três esse ano hahaha :)
O livro ainda não li, mas pretendo :P