"Quando Defoe criou a imagem ideal de um homem sozinho - Robinson Crusoe - deu-lhe a esperança de contato com outros seres humanos e Robinson podia se regozijar com a perspectiva de encontrá-los a qualquer momento. Mas no meu caso, eu tinha que fugir das pessoas que estavam à minha volta; tinha que me esconder delas para não ser morto. Se quisesse sobreviver, tinha que ficar só, absolutamente só." - Wladislaw Szpilman, em seu livro O Pianista
1939, Wladislaw Szpilman (interpretado genialmente por Adrien Brody), pianista polonês judeu, toca “Noturno em Dó Menor” na Polskie Radio, em Varsóvia, enquanto bombas explodem pela cidade, até que uma delas, finalmente, atinge o prédio em que está, interrompendo a música. Wladislaw só completaria a execução da bela composição de Chopin seis anos depois, na mesma rádio, marcando a retomada das transmissões. Nesse período de tempo, uma das manchas mais trágicas da história da humanidade, a Segunda Guerra Mundial, substituíra o som das notas de piano por tiros, explosões e choro de desespero.
Durante esses seis anos, Wladislaw protagonizou uma jornada de sobrevivência que, de tão incrível, só poderia ser real. Vindo de uma família artística e relativamente bem abastada, o pianista primeiramente presencia a decadência social de seu povo e de sua família, quando mesmo andar na calçada se torna proibido, passível de um violento tapa de um dos soldados presentes em Varsóvia. Com dinheiro e, consequentemente, alimento cada vez mais escassos, a família Szpilman logo se vê ao lado de outras milhares de famílias em um dos guetos – o de Varsóvia – criados pelos alemães, confinados do restante dos poloneses, como seres indignos de liberdade, meros ratos aprisionados em meio à miséria e morte, aguardando a própria morte e daqueles que amam pelas mãos de soldados – alemães ou os próprios judeus que serviam a Gestapo, vale dizer – que sem motivo algum se viam no direito de enfiar uma bala na cabeça de homens e mulheres, adultos ou crianças, que apodreceriam pelas sarjetas.
Logo, porém, a situação se complica ainda mais, com o inicio do extermínio dos judeus em larga escala nos campos de concentração. É então que, a caminho de um desses campos, Wladek – como é chamado pelos amigos e familiares – é auxiliado por um oficial conhecido da família e consegue escapar do destino mortal que vitimaria toda sua família, iniciando uma jornada que o faz atravessar meses e mais meses de mudanças de esconderijo, pedidos de ajuda para antigos conhecidos, fome, doença e o medo constante de ser descoberto, até finalmente ser auxiliado nas últimas semanas da guerra por quem menos poderia esperar, um capitão da Gestapo, Wilm Hosenfeld (Thomas Kretschmann).
A história de Wladislaw Szpilman, registrada em livro pelo próprio pianista pouco depois do término da guerra e adaptada por Roman Polanski para as telas, é cinematográfica por natureza. Porém, se outros cineastas usariam a dramaticidade da sua trajetória de sobrevivência para criar um verdadeiro “despertador de lágrimas”, Polanski prioriza um registro cru e fiel dos fatos, resultando em um filme que surge como um documento da época que retrata e emociona sem precisar apelar para uma trilha sonora melancólica ou diálogos novelescos. Os diálogos, aliás, surgem como complementos aqui, mas a força da obra reside mesmo nas imagens captadas por Polanski, não é coincidência, portanto, que as cenas mais marcantes do longa não apresentem diálogos – uma última refeição em família em forma de um caramelo dividido entre seis pessoas; um homem tocando piano sem encostar os dedos nas teclas, já que a música denunciaria seu esconderijo; o contato com o instrumento depois de anos afastado, emocionando a si e ao oficial “inimigo” que ouve com atenção o som obtido das teclas.
Mas antes só de belas imagens pudesse sobreviver o filme. Como não poderia deixar de ser ao retratar a sanguinária Segunda Guerra, não são poucas as cenas chocantes vistas ao longo de O Pianista: corpos apodrecendo pelo chão do gueto; pessoas humilhadas por oficiais nazistas; crianças desesperadas em sua fome e medo; não são poucos os motivos para, mais uma vez, nos revoltarmos com a situação vivenciada pelo mundo durante aqueles trágicos anos de combate contra a Alemanha de Hitler e seus aliados. Dito isso, é interessante como o filme ainda encontra espaço para discutir, mesmo que rapidamente, outros temas importantes para a época, como a corrupção dos oficiais judeus e poloneses, que matavam seu próprio povo à mando da Gestapo e a divisão da população entre aqueles que insistiam na luta pela liberdade – estavam em maior número que os alemães – e aqueles que não viam nada além de um adiantamento do massacre ao se opor aos inimigos –de que adianta a vantagem numérica se a maioria sofria de desnutrição e cansaço pela fome e maus-tratos, além claro, da parcela de idosos, crianças e mulheres? Tudo isso, aliado ao desenrolar de fatos como o levante judeu em Varsóvia, a chegada dos aliados no combate, entre outros, tornam O Pianista uma verdadeira aula de história sobre o contexto em que se passa.
Parte dos méritos do filme podem ser creditados ao roteiro de Ronald Harwood, que adapta fielmente o fabuloso livro de Wladislaw Szpilman para as telas, e à atuação arrasadora de Adrien Brody, que atravessa cada frame do filme com um trabalho fantástico tanto física – emagreceu 15 quilos para o período mais crítico da fuga de Wladek – quanto emocionalmente, derrubando o espectador, seja com sua vulnerabilidade ao ver-se isolado do mundo para manter a vida, seja na emoção incontida ao poder tocar piano novamente. Mas é mesmo o diretor Roman Polanski o grande responsável por O Pianista ser uma obra-prima.
Comandando aquele que pode ser descrito literalmente como o projeto de sua vida, já que diretor e protagonista se confundem nas similaridades de suas trajetórias. Polanski, polonês e judeu assim como Wladislaw Szpilman, encontra nos relatos desse uma maneira de retratar seu passado e de sua família, que estiveram no gueto de Cracóvia – o cineasta, assim como seu protagonista, se refugiou em diferentes esconderijos com a ajuda de subornos pagos por seus pais e perdeu sua mãe (no fim de uma gravidez), morta em um dos campos de concentração. Assim, quando em dados momentos a câmera assume o olhar subjetivo de Wladek, vislumbrando o mundo fora de seus cárceres, não é difícil associar esses momentos como uma rememoração do olhar do próprio Polanski, retornando à infância e sentindo o mesmo terror/curiosidade que toma seu personagem.
Contando ainda com um trabalho técnico fenomenal, O Pianista apresenta um design de produção que confere realismo a decadência de Varsóvia e de sua população, culminando em um plano arrasador no qual o protagonista caminha pelos escombros do que fora uma bela cidade e agora surge como um fantasma de seu passado. Além disso, a fotografia é nada menos que magnífica em sua crueza e realismo, conseguindo ainda assim momentos de pura beleza estética, como ao captar o momento do reencontro entre Wladek e um piano, quando a luz exterior que invade o ambiente assume a posição de um “refletor natural” para a apresentação do pianista ao capitão Hosenfeld.
E quando ao final o protagonista finalmente torna a se apresentar sobre um palco, com o público atento às suas notas, Polanski mantém sua imagem e sua música no quadro durante os créditos finais em uma decisão simples, mas de grande beleza, que surge como uma contra-rima à abertura do filme: não seria justo interromper novamente Wladek e sua arte.
"Se nos picarem, não sangramos? Se nos fizerem cócegas, não rimos? Se nos envenenarem não morremos? E, se nos ultrajarem, não nos vingaremos?" (trecho de O Mercador de Veneza, de William Shakespeare)
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