A proposta apresentada por Ingmar Bergman em Juventude (Sommarlek, 1951) é esquadrinhar os recônditos mais íntimos da memória de uma pessoa, e explorar todas as decorrências dessa intenção. A personagem principal da história é Marie (Maj Britt-Nilsson), uma bailarina clássica que relembra os dias idílicos que passou com um namorado em uma ilha, e essa rememoração lhe traz de volta as dores e as delícias de um episódio que passou a acompanhá-la, de uma maneira ou de outra, pela vida. Inicialmente, somos apresentados ao momento atual da sua vida, em que ela se dedica exclusivamente à sua arte, fato que incomoda muito seu atual parceiro. Para ela, o viver é o teatro antes de mais nada, e o palco é o lugar onde ela se sente completa. E essa predileção pela dança ocasiona um afastamento entre ela e ele, o que é demonstrado sutilmente no roteiro escrito pelo próprio realizador em parceria como Herbert Grevenius.
Em determinada altura, as recordações assomam na cabeça de Marie, e somos transportados, juntamente com o seu pensamento, para aquele verão que ficou para a vida inteira. É então que conhecemos Henrik (Birger Malmstem), um rapaz simples de quem ela primeiro fica amiga, para desenvolver uma paixão posteriormente. Entre eles, surge um amor típico de juventude, com suas incertezas à flor da pele e sua intensidade plena, como se, se não tiverem um aou outro, não serão capazes de amar mais ninguém. Assim, Bergman vai pincelando delicadamente o seu retrato dessa fase da vida em que tudo ganha proporções magnas, especialmente os sentimentos de amor e ódio. Jovens, quando amam, são capazes de viver exclusivamente para a pessoa amada, não medido qualquer esforço para satisfazê-la. Por outro lado, quando odeiam, manifestam tal sentimento de forma muitas vezes cruel, sem que se permitam, muitas vezes, rever o que pensam sobre a pessoa a quem o destinam. No romance de Marie e Henrik, os dois sentimentos estão presentes sob a forma de um pêndulo, evidenciando o quão oscilantes aqueles dois jovens são naquele momento.
Eles também experimentam o poder nefasto do ciúme, por conta do ensaio de triângulo amoroso que vivem pela presença inconveniente de Erland (Georg Funkquist), o tio de Marie, que parece nutrir por ela um estranho sentimento de posse. À medida que o romance dela com Henrik vai ganhando consistência, ele vai agindo como quem se sente ameaçado em seu próprio território, contra-atacando com uma certa repressão à sobrinha. O fato desperta um profundo descontentamento em Henrik, que tem dificuldade em administrar em sentimento, que o vai correndo internamente. Nessa época, a propósito, Marie ainda estava longe de ser uma grande estrela da dança, e seu mundo parece girar em torno de Henrik apenas. Quando o filme começa, podemos notar que ela não é mais tão jovem, mas ainda guarda muito da garota sonhadora que fora anos antes e, na meditação longa sobre seus passos precedentes, ela parece querer reencontrar a pessoa que era exatamente, como se não soubesse que, a cada dia, já somos outros, que dirá depois de anos. E sua memória, desprendida dessa concepção, edulcora e tenta recolorir as cenas de seu romance.
Parte da crítica aponta Juventude como um filme em que muitas das questões basais do cinema bergmaniano estão presentes em estado embrionário. É realmente possível enxergar essa característica aqui, visto que o diretor aborda a incongruência nos relacionamentos, que viria a detalhar em obras como Cenas de um casamento (Scener ur ett Äktenskap, 1973), o questionamento à figura divina, aprofundado em O sétimo selo (Der Sjunde Inseglet, 1957) e o papel da memória na constituição moral e psíquica de um indivíduo, que retomaria de forma mais exegética em Morangos silvestres (Smultronstället, 1957). Todos são considerados hoje como obras-primas do diretor, por mais contrassensual que seja empregar esse termo no plural para um único artista. Desse modo, Juventude resulta em um ensaio poético algo leve sobre um período cheio de descobertas na vida de alguém, sem qualquer traço de maniqueísmo ou sentimentalismo bararto. Bergman flagra a vida pulsando, o despertar dos sentimentos e das sensações que se encontravam adormecidos, apenas esperando a pessoa a quem pudessem se dedicar.
Apesar do teor de leveza que acompanha a obra durante a maior parte do tempo, existe uma tragédia que assinala o fim do romance de Marie e Henrik, que torna as lembranças da bailarina ainda mais vivas. O fato triste é uma decorrência de circunstâncias imprevistas, deixando nela o sentimento de completa impotência. Essas reminiscências também adquirem uma roupagem fantasmagórica para a protagonista, assombrando seu relacionamento atual juntamente com sua dedicação extremada à dança. Todas essas nuances são captadas pelas lentes de Gunnar Fischer, exímio em apontar, nas leves variações em preto-e-branco de que Bergman demorou a abrir mão, toda essa confluência de sentimentos e problemas. O fotógrafo teve uma carreira brilhante, acumulando muitas parcerias com o cineasta, em títulos como o já mencionado O sétimo selo, Sorrisos de uma noite de amor (Sommarnattens leende, 1955) e O rosto (Ansiktet, 1958), que também têm em comum a ausência de uma paleta colorida. E, com a conjugação de direção, roteiro, fotografia e elenco, Bergman assinou uma história de simplicidade e profundidade, um entre tantos exemplares que reafirmam o seu cinema como um espaço de catarse e perscrutação.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário