Que sirva de lição para os iniciantes. Com Ilha das Flores você aprende a elaborar um filme crítico, ousado e polêmico, destacando a pobreza, as desigualdades humanas e talvez, o sentido da vida, tudo em apenas 13 minutos.
Deus não existe
Começar um filme com essa frase é pedir demais a paciência do público moldado pelo conservadorismo religioso, afinal de contas, essa talvez seja a frase mais hedionda e absurda que existe para uma pessoa que crê fiel e incondicionalmente em Deus. Mas qual seria o sentido dessa pequena, porém tão polêmica afirmação? Alguns encaram essa breve e tumultuada abertura como uma metáfora, outros como pretensão, subjugando que a explicação mais notória seria a inexistência de uma “força maior”, a principal causa da miséria brasileira. O fato é que muitos criticam o curta de documentário por essa frase, mas ignoram a profundidade do seu conteúdo, explorado de uma forma criativa e interessante pelo diretor Jorge Furtado, reduzindo assim a crítica construtiva que se faz perante a uma simples e repetitiva explicação sobre o ser humano e coisas ínfimas que o rodeiam, em uma narração certeira do ator Paulo José.
A história, se é que pode-se chamar de história o enrendo do documentário, começa no Rio Grande do Sul com a imagem do Sr. Suzuki colhendo tomates, que mais tarde seriam vendidos, ou melhor dizendo, “trocados por dinheiro” para um supermercado, onde estaria à disposição dos clientes. Eis que surge Dona Anete, ser humano, mãe de família que compra os tomates colhidos pelo japonês e pretende servi-los para o marido e filhos. Enquanto ela prepara o molho de tomate para a carne de porco, animal que serve de alimento para os seres humanos (menos para os judeus) e que se diferencia do ser humano por não apresentar telencéfalo altamente desenvolvido, muito menos um polegar, “que dirá opositor”, ela percebe que um dos tomates comprados não está em condições de ser aproveitado como alimento e joga-o no lixo. O roteiro do curta-metragem nos leva então, até o local onde todo o lixo de Porto Alegre é depositado. Esse lugar é chamado justamente de “Ilha das Flores”, mas que fique bem claro que não há muitas flores por lá, há no entanto, muito lixo, que pode ficar ao ar livre, onde o seu odor extremamente desagradável não incomodará a ninguém. Tem muitos porcos na Ilha das Flores também, porcos que cujo dono separa todo o lixo vindo da capital gaúcha e que serviria de alimento para o animal, incluindo o tomate que Dona Anete rejeitou e jogou no lixo. Acontece que também há muitas pessoas que residem na Ilha das Flores, seres humanos com telencéfalo altamente desenvolvido e polegar altamente desenvolvido. Mas ao contrário de Dona Anete e do dono dos porcos, eles não têm nenhum dinheiro, e suas vidas sustentam-se na miséria e no lixo que seriam rejeitados pelos porcos, onde que por coincidência está o tomate podre, que viria a servir de alimento para a família de Dona Anete, mas que ela julgou dispensável.
Chegamos neste ponto, que é o ápice da crítica estabelecida pelo conteúdo do documentário. Apesar de deixar extremamente claro que o ser humano é uma criatura bípede, assim como a galinha, mas que se diferencia dela por diversos aspectos intelectuais e físicos, o roteiro deixa ainda mais evidente que as pessoas que procuram alimentos no lixo da Ilha das Flores encontram-se em uma “posição social” que vem logo abaixo dos porcos, cuja alimentação é favorecida pelo seu dono. E vemos aí então mais um diferencial entre seres humanos e animais como o porco. Além de não ser quadrúpede, como o suíno, o homem possui uma diferença notável: é livre, palavra que se aplica a quem se encontra no estado de liberdade e que muitos compreendem, mas não entendem como ela pode prejudicar ou melhorar a vida da pessoa, dependendo da sua “classe social”. Agora, que muitos desejem ter um dono para ao menos poderem ter o que comer, é lamentável, ainda que real.
Não há muito mais o que dizer sobre Ilha das Flores, documentário brasileiro considerado um dos melhores já feitos em território nacional e que em apenas 13 minutos de duração empreende uma crítica inteligente à desigualdade social no Brasil e ao desperdício, quem sabe. A linha de fatos que une uma sequência à outra, desde a plantação do tomate até a chegada e rejeição do alimento à Ilha das Flores, servindo de comida para os seres humanos que lá residem, poderia ter sido maior caso a pretensão ou metáfora desnecessária (chame como quiser) do propósito da abertura não levasse o filme à uma discussão sem fim à vista sobre a causa da miséria no Brasil, cuja explicação tem fundos bem mais sólidos que a existência ou não de Deus, cuja verdade está muito além do nosso alcance.
Mas vale principalmente com uma mensagem chocante da realidade do nosso país, onde o preconceito e a desigualdade caminham juntos há muito tempo. A lição de moral, ainda que agora seja batida, que o filme de Jorge Furtado passa para o espectador é que, somos todos iguais, afinal de contas, somos seres humanos e apresentamos telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor e liberdade.
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