Kubrick teve uma trajetória esplêndida e extremamente relevante para a história do cinema. Explorando a violência, o psicológico, a guerra e a sociedade com enquadramentos e representações minuciosos, seus filmes elevaram a linguagem cinematográfica a outro nível, inovando em vários sentidos, desde o roteiro até o visual. Polemizando, o diretor de múltiplas funções pegou temas fortes, criou cenas memoráveis e propôs reflexões profundas, partindo de relações humanas até relações universais e inclusive sobrenaturais. O seu legado ainda possui muitos outros fatores a serem estudados para demonstrar sua grande influência ao cinema contemporâneo.
Sua última obra, “De Olhos Bem Fechados” (Eyes Wide Shut, 1999), foi finalizada após sua morte e na sua estreia, crítica e público ficaram divididos sobre a qualidade da obra, sendo que muitos alegaram que faltava a mão do diretor para transmitir a real essência do filme. Atualmente, a opinião mudou um pouco e percebe-se o quanto a obra é acima da média e mais um marco para a carreira de Kubrick. Seu desenvolvimento é arrastado, com as ideias e alterações de rumo e ritmo sendo minimamente construídos, o que às vezes pode soar repetitivo e óbvio, por isso não é um filme que funciona para qualquer um, ainda mais pela consequente longa duração (duas horas e meia). Mas é justamente nesse ponto que está todo o cuidado para a digestão da história e o desenvolvimento das personagens.
A maioria das realizações de Stanley Kubrick vêm de adaptações literárias, em que ele altera livremente vários aspectos da obra original em prol da melhor linguagem do enredo através da sétima arte. Isso é feito sabiamente em vários momentos. Há a conversão de um relato pessimista da instabilidade da Guerra Fria para um retrato irônico e de humor negro do alto escalão russo e americano em “Dr. Fantástico” (Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb, 1964), o terror mais psicológico de “O Iluminado” (The Shining, 1980) ao invés da história de monstros do livro homônimo de Stephen King etc. Seu filme de 1999 não é diferente. A peça do início do século XX “Traumnovelle”, de Arthur Schnitzler, ganha moldes na Nova Iorque dos dias atuais, em que um casal (interpretado com impacto por Tom Cruise e Nicole Kidman) entra em conflito após revelações que põe em questão a fidelidade e o destino deles e de sua filha.
Logo no começo, temos uma apresentação muito bem mediada da personalidade e das intenções dos dois. Seus status elevados na sociedade escondem o que há por trás desse glamour, que logo de cara revela-se um jogo de sedução, hipocrisia, prostituição e drogas. Os protagonistas participam dessa “brincadeira”, direta ou indiretamente, e parecem ter consciência dos seus limites. É quando o espectador é obrigado a testemunhar a relação do casal entre quatro paredes que presencia-se uma discussão incomum, regada à maconha. A questão do papel e da moral do homem e da mulher vem à tona até atingir o grande conflito principal. Alice (Kidman) revela que não teria medo de largar tudo por causa de um homem que mal olhou em seus olhos uma vez, em uma viagem. Esse é o começo da epopeia do Dr. William (Cruise) pelas ruas da cidade em duas noites que vão mostrar toda a realidade pessoal e social no momento.
A estrutura narrativa do filme é ótima, surpreendendo a cada momento. O conflito inicial já mencionado surge naturalmente, impondo uma situação que para muitos seria difícil de refletir o que fazer a respeito, criando um bom clima de suspense do que pode suceder com o rumo de William. Não se sabe direito como tudo aquilo vai terminar, pois uma relação instável realmente se baseia em fatores imprevisíveis. O desenrolar da primeira noite de William após a revelação é cheia de surpresas e momentos chocantes. A dúvida gerada pelo caráter dos lugares e pessoas que surgem criam o ritmo que envolve. Os longos planos e diálogos extensos, que poderiam ser desnecessários ou muito cansativos, acabam por auxiliar na imersão a esse chocante enredo. A noiva solitária, a prostituta, a gangue homofóbica, o pianista, a loja de fantasias “Rainbow” (Arco-Íris, em inglês), a chocante ilusão à chegada ao “fim do arco-íris” na sequência da mansão são diversas pequenas histórias que vão construir a visão de mundo e de personalidade de William, que culminarão em respostas e soluções pouco agradáveis.
“De Olhos Bem Fechados” é pesado, difícil de aceitar, justamente por ser realista. Manter um relacionamento fiel, recíproco e prazeroso não é tarefa fácil. A forma que Kubrick conecta os fatos e cria soluções monta um dos melhores exemplares de estudo conjugal do cinema. As ótimas atuações, a fotografia notória e elaborada bem aos traços dos outros filmes de Kubrick, os cenários e figurinos detalhados e condizentes ao clima da história (destaque para o uso das máscaras, que simboliza muito bem a expressão chique e falsa da alta sociedade), a trilha sonora minimalista, marcante e cheia de intensidade... A fusão de conteúdo e técnica é o talento nato do diretor para criar uma grande experiência. Ao término, fica a conclusão irônica, inteligente e plausível que sintetiza a complexidade da mensagem que o filme quer passar. E esse é, com dignidade, o fim da carreira de um gênio.
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