A guerra do inconsciente
Assim como qualquer outro filme de Terrence Malick, o longa-metragem Além da Linha Vermelha de 1998 é um filme para poucos. Para quem espera um filme repleto de cenas de ação, ao melhor estilo dos filmes de guerra, como o seu rival de Oscar, O Resgate do Soldado Ryan, irá decepcionar-se muito com o longa de Malick. Esta obra – que pode ser, também, identificada como um poema visual (calcado nas imagens) – não é nada convencional: poucos diálogos, muito extensa e nada ágil. O diretor não está, desta forma, preocupado em mostrar explosões fantásticas ou corpos saltando para tudo que é lado. Malick, como sempre, mostra-se um diretor cerebral, preocupado mais em nos descrever o estado de espírito pelo qual passavam os combatentes da Batalha de Guadalcanal a partir de suas divagações e reflexões; percebe-se um interesse evidente em apresentar os personagens sensibilizados pela destruição e extermínio no qual estão envolvidos. Além da Linha vermelha, destarte, não pode ser considerado um ‘’filme de guerra’’ e, sim, um efetivo ‘’filme sobre a guerra’’. São os degradantes efeitos da guerra dentro de cada um de nós.
Após duas década sem realizar um filme, o recluso Malick retorna com Além da Linha Vermelha que, assim como todos os seus outros filmes, contém as caraterísticas que marcaram a sua curta filmografia: quebra da linearidade temporal, os chamados silêncios mortos, fotografia deslumbrante, culto quase que religioso às forças naturais e, principalmente, o foco na dimensão psicológica dos personagens que compõem o drama. Com efeito, em Além da Linha Vermelha, Malick consolidou um estilo que sempre procurou fugir das imposições narrativas por parte dos estúdios e do mercado cinematográfico convencional norte-americano.
Este filme lírico retrata, através de uma visão realista da guerra, a história de um grupo de fuzileiros americanos na Batalha de Guadalcanal, ocorrida durante a Segunda Guerra Mundial. Com uma narrativa fragmentada e nada convencional, o diretor utiliza o referido momento histórico para debater e refletir sobre os efeitos nefastos da guerra na cabeça dos homens. O pensamento dos soldados alternam-se, e, com o decorrer da película, as sensações destes homens nos é apresentada especificamente. O longa não tem um personagem principal, tendo como resultado, a fragmentação da linha narrativa/cronológica, por parte do diretor, em vários personagens e histórias de vidas diferentes.
A todo instante os soldados perguntam-se qual o sentido de tudo aquilo. Qual o objetivo da guerra? Qual o direito deles em devastar toda natureza? E a de outro ser humano? Tudo isto é realmente necessário? O que nós, soldados, estamos, realmente, fazendo aqui? Sargento Walsh – personagem muito bem interpretado por Sean Penn – determinada hora divaga: "Eu olho para um garoto morrendo e não sinto nada. Eu não sinto mais nada por ninguém", ao qual recebe uma resposta imediata de Sargento Storn - interpretado por John C. Reilly - "Soa como uma benção." Poético.
Na realidade, Além da Linha Vermelha foi muito criticado por ‘’perder muito tempo do filme com cenas de soldados filosofando’’. Sem dúvidas, os indivíduos responsáveis por tais críticas não estão acostumadas com o cinema reflexivo de Malick e, sim, com filmes mais ágeis e intensos, como os blockbusters que invadem as salas de cinema. Os soldados divagam acerca de temas que achamos impossível passar pela cabeça de um combatente nas exaustivas linhas de frente do Pacífico. A verdade é, que apesar de todas as críticas que o filme recebeu, Além da Linha Vermelha constitui-se num dos maiores sucessos da filmografia de Malick, tendo sido indicado para sete oscars, incluindo melhor filme e melhor diretor (perdendo injustamente para Steven Spielberg).
Os aspectos técnicos do filme são impecáveis. Contando com uma belíssima fotografia – característica intrínseca dos filmes de Malick – o diretor faz uso dela para evidenciar as paisagens deslumbrantes do Pacífico, fazendo com que a câmara (quantos enquadramentos perfeitos!) e, consequentemente, quem está assistindo o filme, realmente ‘’sinta’’ os efeitos da guerra. Grande destaque do filme é, também, a fantástica trilha sonora de Hans Zimmer. A música God, Yu Tekem Laef Blong Mi, cantada pelos nativos, é magnificamente linda. Ouvir ela com as imagens ao fundo dos soldados batalhando e correndo pelas colinas de Guadalcanal é uma experiência sensorial e tanto. Emociona muito. Destaca-se também o estrelado elenco composto por Sean Penn, John Travolta, George Clooney, John Cusack, Nick Nolte, Wood Harrelson, Elias Koteas, Adrien Brody, Jim Caviezel e Ben Chaplin. Alguns, entretanto, fazendo pontas por apenas cinco minutos no filme inteiro. Como o novo filme de Malick, aguardado por duas décadas, estava envolto em um aspecto lendário, alguns atores, voluntariamente, ofereceram-se para integrar o tão esperado filme. Sem dúvidas, um detalhe curioso, que torna ainda mais místico e lendário o terceiro filme da carreira de Terrence Malick.
Além da Linha Vermelha foi criado para ser apreciado com todos os sentidos, constituindo-se numa experiência sensorial única e indescritível. Um poema visual típico da filmografia de Malick que foge dos habituais filmes de guerra. Talvez o maior defeito do filme seja, realmente, a longa extensão da película que torna o filme deveras cansativo. Mas alheio a este detalhe, quem assistir o filme passará por uma grande experiência filosófica sobre a condição existencial dos homens, repleto de boas qualidades, sejam técnicas, sejam reflexivas. Sem dúvidas, uma proposta bem-sucedida de fazer com que o expectador reflita sobre a filme e perceba os dilemas que acometem os soldados ianques em situações tensas e extenuantes como a vivida em Guadalcanal. Uma grandiosa obra-de-arte (que muitos podem não achar, assim como também não acham A Árvore da Vida) que descreveu não a guerra como um todo, mas, sim, a guerra que cada homem, permeado de dúvidas e incertezas, enfrenta consigo mesmo. A guerra do inconsciente.
"Sargento Walsh – personagem muito bem interpretado por Sean Penn – determinada hora divaga: "Eu olho para um garoto morrendo e não sinto nada. Eu não sinto mais nada por ninguém", ao qual recebe uma resposta imediata de Sargento Storn - interpretado por John C. Reilly - "Soa como uma benção."" as falas dos atores estão inversas.
Realmente uma obra de arte a ser contemplada eternamente, um dos melhores filmes de guerra já produzido, poético, filosófico, sensível, reflexivo e profundo, Malick é mestre!!! Belo texto!!!