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Sertânia

(Sertânia, 2019)
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Críticas

Cineplayers

Alucinação e história se esbarram no cinema

8,5

Material-testamento do Geraldo Sarno. Aqui temos um cinema preocupado em aloprar a linguagem, onde eventos históricos se conurbam pelo tempo com suas permanências históricas a pulsar pela metragem.

De lapada somos projetados a encontrar o protagonista Antão-Jararaca-Gavião (Vertin Moura) agonizando arrastando-se pela mata nos seus últimos estertores de existência onde repensa sua trajetória moldada de violência, ilusões, fome e desgraça. Aqui numa escolha de câmera persecutória que enseja um pertencimento diegético alucinógeno do espectador a entrar em tela, com movimentos de perambulação das imagens tanto com mudanças de velocidade ou então com sobreposições de imagens, ora nos dando a oportunidade de termos a visão do protagonista em desespero ou por nos enfiar naquela ambientação seca e grosseira do sertão. Some isto a uma fotografia com um branco estourado – num preto e branco fodidamente bom – para expor um nordeste de sol, fome e violência; e nada menos que sensacional em seus signos próprios de história, cinema, regionalismo e resistência. O alto contraste das imagens já demonstra a secura daquela região que traz a reboque seu caos desgovernado de violência também sim, mas proveniente dum completo abandono dos poderes públicos em algo que manter-se-ia a região sob controle da política dos coronéis com seus poderes de jagunçagem. Por isso a metodologia acaba por funcionar na imagem ao fim. Um clima brutal e iluminado de tal maneira, que se dispõe nas raias do incômodo, mas que rege sua força exatamente pelo exagero do Sol, quase como um personagem, sempre presente queimando a todos que ali que são compelidos a aguentar sua presença.

Este cinema que se agarra ao sertão nos tempos do cangaço – que se saliente que estamos aqui num filme que versa de período histórico pré-cangaço tradicional, anterior às lideranças famosas de Lampião e de cangaceiros importantes como Corisco e Jararaca – sabendo usar bem dos signos visuais conhecidos do subgênero como na caça aos cangaceiros ou jagunços (que são figuras controversas e semi-opostas, outra coisa que é de excelente tom afirmar, já que se confundem a olhares ignorantes, preguiçosos ou mal-intencionados), ou no uso da selvageria, que aqui se mostra tanto como condição de sobrevivência quanto de orgulho de usá-la como vínculo de controle e poder na região.

A alucinação tem seu espaço de vulto na fita por se encontrar tanto com a lisergia das imagens propostas quanto com a aspereza local que permite esta divagação sensorial e dolorosa. Numa via crucis de pura epistemologia da fuleragem retórica visual onde o protagonista tergiversa consigo mesmo sobre seu universo enquanto sangra vagarosamente em busca da morte. Onde vai até os mortos em busca de algum objetivo que o referencie em vida, ou que justifique sua procura, sempre com muita pressa, já que seu fim está a chegar. Por isso a escolha das trucagens não é aleatória. Tem uma permuta em si tanto na fotografia quanto nas escolhas de montagem, algo a permitir que os planos sejam coadunados com a dor e a amofinação latente. Com uma luz estourada a acentuar ainda mais o amargor penitente daquele que alucina.

Existe um interruptor narrativo da violência aqui que se demonstra como algo de pertencimento ao sertão via construção histórica que o filme usa sem apelar – que era algo que eu faria –, onde acabamos por naturalizar esta mesma selvageria sem a necessidade de grandes arroubos. Existe uma estrutura de mostrar as consequências desta barbárie (assim como seus resultados diretos), do que ela sendo feita strictu sensu em tela. A dor pós-bestialidade interessa mais que ato causador visto diegeticamente. Os gemidos e babas do personagem principal estão em pauta. A dor. E ela alucina e educa. Sim, a dor é extremamente educativa e reveladora, assim como estabelece fragorosa relação com a ambientação proposta. Aquele corpo arrastando-se na mata sertaneja como um animal peçonhento em busca de uma toca para morrer em paz, ou a dor de uma mulher nua que não nutre mais esperanças diante da violência estrutural e simbólica que a acomete. São os resultados adiante. O desespero.

Como caracterização de quebra de prerrogativas clássicas, a fita mantém a tradição contestadora (canalhice minha meter estas duas palavras juntinhas em combinação, mas a minha sacanagem tem função útil) cinemanovista de outrora, onde a percepção de quebra seja daquele cinema ou de outros que vieram a seguir nos idos das décadas de 60 e 70 [cinema marginal e turma da boca do lixo]. A percepção política anti-estética-da-fome era enaltecida pelos primeiros assim como os segundos – marginais – propunham uma quebra de linguagem que propiciasse por vezes um sarro de si próprio, não só acadêmico, mas social e político, como fizera Andrea Tonacci em Bang Bang (Bang Bang, 1971). Aqui Geraldo Sarno aponta a existência diegética tanto da equipe de gravação da fita quanto mostra o ano de 2018 num São João com a cabeça de um sertanejo a mostra numa festa. Esta primeira quebra vem pela consequência do horror, da secura, da falta de perspectiva de uma figura perdida que não sabe onde olhar (personagem de Julio Adrião), que enxerga no desespero algum mote de sobrevivência que findará em puro fracasso, e seu desespero visto por todos dentro e fora da equipe. O que é observado no 2018, reitera-se a permanência não só da cabeça na história, mas daquilo que viera a reboque até então: o sertão vivo, desde seu sol acachapantemente insalubre, mas delicioso, assim como das estruturas sociais e políticas nas quais algumas delas metamorfoseiam-se, mas ainda demonstram eterno tesão de controle e poder, vide os coronéis hoje agropecuaristas ou a força policial que defenestra o povo sempre que ache necessário. São elementos em encaixe no abuso sensorial-histórico que o material oferece.

Aqui reside o abandono político que por séculos tratara o nordeste profundo como algo exótico que não vertia poder em retorno, o que servia de fundamentação espúria para a negligência federal. Por isso a existência da criação de forças paralelas tomaria de conta da região por algum tempo. E isto é algo afrontoso por demais para ser concebido pelas forças policiais e políticas oficiais. Seja a figura de Antônio Conselheiro como figura profética do caos antirrepublicano ou de um Lampião mandando e desmandando no cangaço a posteriori. Sertânia se encontra no meio de campo – um entremeio meio-termoso – dessas figuras, mostrando características transicionais onde sua verdadeira permanência acaba por ser no imaginário coletivo da dor.

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